por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Abril de 2004
Crónica 13/2004
Não é por não se votar ou por se votar em branco que um lugar do Parlamento fica vazio, mostrando ao mundo uma perturbadora cárie democrática.
Votar em branco é indubitavelmente um direito. Um direito importante e que deve ser garantido a todos os cidadãos. A liberdade de escolher deve incluir a liberdade de não escolher e uma das muitas maneiras de escolher não escolher é o voto em branco. Poderá ser, para um eleitor consciente e em eleições livres, a maneira de dizer que recusa as opções que lhe propõem, aceitando ao mesmo tempo a regra da eleição.
Há casos em que o voto em branco pode ser até a única opção do homem livre: quando o voto é obrigatório mas as eleições não são livres e as opções são todas iníquas. A única forma de não participar na cobertura da fraude é votar em branco.
A maneira como se decide não escolher tem três sabores: a abstenção, o voto branco e o voto nulo. E a sua leitura política está bem definida: eles representam o desinteresse, a hesitação e a iliteracia. O que é mais grave (ou menos eficaz) é que esta ausência de escolha não tem qualquer repercussão no desenlace da eleição. Não é por não se votar ou por se votar em branco que um lugar do Parlamento fica vazio, mostrando ao mundo uma perturbadora cárie democrática. As eleições escolhem sempre alguém. Pode-se participar nessa escolha ou não, mas alguém será escolhido. Alguém escolhe pelos que não votaram, pelos que votaram em branco, pelos nulos.
Muitas organizações políticas portuguesas ao longo dos anos apelaram à anulação do voto "com uma frase revolucionária" como forma de recusar a "farsa das eleições burguesas". Alguém sabe quantos o fizeram? Cada um deste votos fez ver a sua frase revolucionária a dois ou três escrutinadores e foi somado aos votos onde pobres analfabetos tinham escrito diligentemente cruzinhas em todos os quadrados.
O problema do voto em branco é a sua utilidade. O voto em branco consciente, de alguém que recusa todas as opções que lhe colocam na bandeja e que clama pela possibilidade de outra escolha é exactamente igual ao voto em branco analfabeto, ao voto em branco imbecil e ao voto em branco enfastiado.
O voto em branco, para ter peso político, tem de ser acompanhado de uma declaração de voto, que se anexa em geral na roda de amigos: "Não vou votar em nenhum daqueles sacripantas". O voto não vale nada, a declaração pode valer alguma coisa. O voto em branco só terá peso se houver uma declaração que ponha o preto no branco. Em Portugal desde Abril o voto em branco terá servido certamente para exprimir muitas opções, adesões e desgostos. Ninguém sabe quais.
O apelo de Saramago ao voto em branco não tem nada de espantar vindo de quem vem e constitui mais um ataque, veemente e consciente, a um dos pilares da periclitante democracia que temos. O que espanta é a benevolência com que a sua proposta foi recebida, pois Saramago apela à demissão dos cidadãos de uma parte essencial da sua escolha. Que essa escolha esteja demasiado condicionada (antes e depois das eleições) é de facto um problema, mas ele não se resolve com a demissão dos cidadãos e a entrega da liderança a uma vanguarda esclarecida que há-de aparecer numa manhã de nevoeiro.
O défice de democracia existe mas ele deve ser colmatado precisamente através do combate ao abandono, à rendição, à desistência, ao voto branco, à abstenção, ao voto nulo. Consegue-se através da participação cidadã nas eleições e nas organizações cívicas, certamente, e, de forma ainda mais importante, nos empregos, nas escolas, no dia-a-dia.
A proposta de Saramago é um gesto de eugenismo político: estando esta democracia frágil e doente, Saramago quer aproveitar para matá-la de vez. Haverá certamente alguma hiena à espreita para lhe comer os restos e um espectro para lhe tomar o lugar.
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