terça-feira, abril 13, 2004

Buc 2

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Abril de 2004
Crónica 14/2004


Podia ser "combinado", porque há os passes combinados, os pratos combinados e não havia razão nenhuma para não haver módulos combinados.


Quem anda de autocarro em Lisboa e não tem passe mensal tem a possibilidade de adquirir bilhetes pré-comprados da Carris nos quiosques da empresa. Os pré-comprados dão pelo nome comum de "módulos", saem a metade do preço de um bilhete comprado a bordo dos autocarros e cada um deles dá direito a duas viagens, devendo um dos extremos ser obliterado quando se entra a bordo do autocarro (ou os dois extremos, caso o trajecto a fazer inclua um percurso urbano e um percurso suburbano).

Nada disto teria mistério não fosse a sigla que aparece no meio do dito bilhete: Buc 2.

Em momentos de viagem urbana sem livro nem jornal próprio ou alheio para me entreter (ou espaço para os abrir), dei por mim a ler cuidadosamente as duas faces do bilhete sem conseguir descodificar a sigla e o passatempo foi ganhando alguma capacidade de entretenimento (dizer que se transformou num desafio intelectual seria excessivo).

O "B" não tem mistério, é certamente "bilhete" — até porque o objecto dá pelo nome comum de "módulo" e todos sabemos a aversão que as empresas têm a usar os nomes comuns das coisas. Chegados ao "u" as coisas tornavam-se mais complicadas: "urbano"? Uma colega a quem propus a charada, mais conhecedora da perversidade do mundo, garantiu que "u" devia ser "unimodal" mas não foi capaz de fazer nenhum proposta para o "c".
O "u" também podia ser "unidade" ou "unitário", até porque vinha seguido do algarismo 2 e "unidade 2" é algo que parece poder ser fruto do espírito criativo da Carris, mas leva-nos a um choque frontal com o "c": "bilhete unitário c..."?
O "c" não podia ser de Carris porque vinha em minúscula. Alguém disse que o "c" queria com certeza dizer "combinado" porque há os passes combinados, os pratos combinados e não havia razão nenhuma (a não ser a lógica, que constitui um fraco argumento) para não haver módulos combinados mas, se todas estas propostas podiam conter uma peça do "puzzle", faltava-lhes coerência global.
Os três parágrafos do verso do módulo não ajudavam. Repetiam tautologicamente que uma viagem urbana "corresponde a uma validação (1 BUC)" mas falavam às tantas em "Coroa urbana" o que poderia ser uma pista. Buc seria uma sigla em inglês? Algo como "B... Urban Crown"?
Não quis dar-me por vencido e perguntar aos motoristas dos autocarros, telefonar para a Carris ou consultar o seu site. Além de que me tinha afeiçoado ao mistério. Às vezes imaginava que a sigla não queria dizer absolutamente nada e tinha sido subrepticiamente incluída nos módulos como uma mensagem em código sobre o absurdo da vida, um hino ao devaneio, um apelo subliminar à Revolução capaz de fazer corar de prazer o Bloco de Esquerda. E a convicção reforçou-se quando não consegui encontrar nenhum condutor da Carris que fizesse a mínima ideia do que aquilo queria dizer. O Buc tinha-se transformado num mistério e é sabido como as nossas vidas precisam de mistério, principalmente quando estamos dentro de um autocarro.

Deixei de tentar saber o que queria dizer o Buc até que há uns dias, ao perguntar mais uma vez a um grupo de amigos o que achavam que queria dizer a sigla — imaginando que os ia fascinar com o mistério — recebi a resposta mortal: "Bilhete único de coroa. Fui ver à Internet". Era batota, mas o mal estava feito. Aquilo que tinha parecido uma cúmplice e irónica piscadela de olho, era afinal uma designação estúpida e inútil, criada por uma dúzia de burocratas sem imaginação.

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