terça-feira, março 09, 2004

Lista negra

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 9 de Março de 2004
Crónica 9/2004

Esta lista negra é, na melhor das hipóteses, um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores.

Existe uma hierarquia na nossa convicção pessoal da culpa que tem um paralelo nas diferentes figuras do processo de acusação judicial. Pode ser-se investigado, suspeito, arguido, acusado, pronunciado, julgado e condenado. Apesar de todos os cuidados da lei e da moral, que estabelecem a presunção de inocência como princípio básico até ao fim destes trâmites, é evidente que ninguém continua a ver como absolutamente inocente alguém que foi acusado de um crime. Um acusado vive já num limbo, entre a inocência e a culpa, onde talvez não seja ainda culpado mas onde já não é certamente inocente.

Podemos não condenar um acusado, mas relativamente a ele estabelece-se pelo menos uma suspensão da confiança. É preciso alguma disciplina profissional (como a que se exige de polícias, juristas e jornalistas) para tratar acusados de acordo com o princípio da presunção de inocência.

A lista dos estádios de confiança e culpa foi recentemente acrescentada com uma nova categoria: a de "presumível suspeito", que é algo paralelo à noção política de "candidato a candidato". A nova categoria representa alguém que talvez seja já suspeito mas que ainda não fez prova dessa condição ou que ainda não é suspeito mas... pode vir a sê-lo. Os "presumíveis suspeitos" mais famosos são os que fazem parte da lista de 127 fotografias que têm sido usadas para identificação no processo Casa Pia.

Penso que podem existir três maneiras de construir as colecções de fotos usadas para identificação de suspeitos: 1) juntar a foto de um suspeito a outras obtidas de forma aleatória, 2) misturar a imagem de um suspeito com as de indivíduos de características físicas semelhantes (quando elas tenham sido previamente referidas num depoimento) ou 3) reunir aleatoriamente uma colecção de fotos de indivíduos pertencentes a um dado grupo (malabaristas, por exemplo) quando uma vítima afirma ter sido abusada por alguém que pode reconhecer e de quem sabe apenas ser malabarista de profissão.

Não parece provável que a famosa lista de fotos tenha sido organizada de nenhuma destas formas.

Há uma quarta hipótese que é a de que a polícia tenha feito uma colecção de fotos com toda a gente que já foi objecto de rumores relacionados com a pedofilia (que é natural que apenas toque pessoas famosas), mas é menos surpreendente o contrário: que seja devido à sua presença na lista de fotos que certas pessoas são objecto de rumores.

O que nos devolve à pergunta que nos intriga a todos: por que raio é que as fotos mostradas foram estas e não outras? É que se estas não foram obtidas aleatoriamente, foram escolhidas e os cidadãos têm o direito de saber os critérios da escolha. Até porque, com intenção ou sem ela, a utilização destas fotos lança suspeitas sobre os incluídos, que o Ministério Público não pode ignorar. A lista coloca os fotografados numa antecâmara da acusação, num estado de "presumível suspeição" que afecta de forma inaceitável a sua imagem pública.

Tal como está, a colecção de fotos de notáveis é um Índex, uma lista negra: na melhor das hipóteses é um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores. Como ninguém quer dar a impressão de que resiste a ser investigado ou quer pressionar a justiça, ninguém reage à sua inclusão. E os que estão fora não querem dar a impressão de que receiam passar à categoria de "presumíveis suspeitos" e também não atacam o método. Não é por isso de estranhar que a generalidade dos políticos — como notou Mário Mesquita — se mostre refém deste instrumento e reaja com tibieza à notícia da sua inclusão. Mas o que exigimos dos eleitos é algo diferente: que combatam a difamação que a lista constitui, o medo que a lista (e a sua difusão) pretende espalhar e a descredibilização da investigação que ela é.

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