por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Março de 2004
Crónica 8/2004
A liberdade de expressão é a liberdade de podermos exprimir-nos sem sofrer escrutínios prévios seja de quem for.
A cerimónia de entrega dos Óscares, que centenas de milhões de pessoas puderam ver na passada noite de domingo para segunda, foi transmitida pela cadeia de televisão americana ABC não em directo mas com um atraso de cinco segundos, como se sabe. Essa "décalage" de cinco segundos entre a captação e a difusão das imagens foi usada pela ABC para visualizar as cenas captadas pelas suas câmaras, de forma a garantir que nenhuma imagem "imprópria" seria transmitida para casa das famílias americanas que seguiam o espectáculo.
A ABC garantiu que a diferença de cinco segundos não tinha quaisquer intuitos políticos e que não se destinava a censurar qualquer conteúdo mais político em eventuais discursos de galardoados, mas sim a evitar uma nova explosão de imoralidade — como a exibição de um seio por Janet Jackson durante a transmissão da Superbowl.
A decisão da ABC reveste-se da coincidência de ser tomada um ano após o discurso "Shame on you, Mr. Bush" de Michael Moore, ao receber o Óscar pelo seu documentário "Bowling for Columbine", e não pode, por isso, deixar de ser vista a essa luz. Tanto mais que, na altura, não faltou quem criticasse o facto de se permitir que uma cerimónia que devia ser uma festa "apolítica" do cinema se prestasse à transmissão de uma mensagem política — de esquerda, para mais.
Em França, no passado sábado, os organizadores dos prémios Victoires de la Musique decidiram fazer a transmissão televisiva da cerimónia de entrega dos seus galardões com dez minutos de desfasamento, invocando "razões técnicas". A inabitual decisão foi considerada por muitos como uma forma de desencorajar os artistas franceses, em pé de guerra contra o Governo, a fazer intervenções críticas sobre a política cultural francesa.
Pode parecer que estas decisões são irrelevantes, já que os espectadores puderam, em ambos os casos, ver aquilo que se passava na cerimónia sem contratempos e dir-se-á que cinco segundos ou dez minutos de atraso não são importantes. A questão, porém, não é essa.
A questão é que a liberdade de expressão é a liberdade de podermos exprimir-nos sem sofrer escrutínios prévios seja de quem for. Este tipo de atitudes, seja qual for a sua intenção e os seus critérios, dão pelo nome de censura — ou, para usar a expressão adocicada inventada pelo marcelismo, que aqui parece estranhamente adequada, "exame prévio".
A liberdade de expressão — e o correlativo direito à informação — é a liberdade de falarmos sem receio de sermos calados, a certeza de que podemos dizer a nossa opinião sem precisar de passar o crivo de outrem, sem correr o risco de um eventual silenciamento, sem submissão. Isso não significa que não haja responsabilização pelo que se diz — pelo contrário. Quer dizer precisamente que a responsabilidade pelo que é dito (ou feito) é sempre assumida por quem disse (ou fez). Depois de ter podido dizê-lo. Responsabilidade em vez de menoridade.
A aceitação do princípio do exame prévio e da aprovação prévia do discurso, seja pelos órgãos de comunicação social, pelo Estado ou por qualquer polícia do pensamento é inaceitável numa sociedade democrática (seja em nome da moralidade fundamentalista ou de outra coisa qualquer) e fere algo que é essencial: a liberdade de opinião e de expressão do pensamento.
A liberdade tem riscos e há alguns que a sociedade pode decidir não correr em certos momentos, limitando o seu âmbito — mas a possibilidade de ver um seio nu (ou qualquer outra coisa que possa acontecer num palco dos Óscares) não constitui certamente um risco tão elevado que justifique liquidar algo de tão essencial como a liberdade de falar sem entraves.
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