Texto publicado no jornal Público a 16 de Março de 2004
Crónica 10/2004
A segurança, a autoridade e a eficácia têm de coexistir com o escrutínio e o debate democrático e com o exercício pleno das liberdades.
No momento em que o espectro do terrorismo se materializa sobre a Europa — não em alguns pontos do continente, reflectindo conflitos localizados, mas ameaçando globalmente a Europa democrática — e passados os primeiros dias de luto solidário e na tentativa de racionalizar o horror dos atentados de Madrid, é chegada a hora de encarar algumas novas realidades.
No momento em que o espectro do terrorismo se materializa sobre a Europa — não em alguns pontos do continente, reflectindo conflitos localizados, mas ameaçando globalmente a Europa democrática — e passados os primeiros dias de luto solidário e na tentativa de racionalizar o horror dos atentados de Madrid, é chegada a hora de encarar algumas novas realidades.
A Europa em geral vive a partir de agora sob uma ameaça credível de atentado terrorista que não tem paralelo na história recente. Não há, neste capítulo, nenhuma isenção para Portugal, como tantas vezes aconteceu no passado, devido à sua posição marginal em termos geográficos, económicos, políticos e de fluxos. A intenção dos terroristas é espalhar o terror, da forma mais mortífera possível, e nenhum país se pode imaginar a salvo desta sanha, como já tem sido dito. Se a pequenez de Portugal define uma probabilidade mais baixa de ser um alvo, é também verdade, em contraponto, que a nossa inclusão na União Europeia torna esse argumento hoje menos válido e que a nossa relativa fragilidade em termos de segurança aumenta por sua vez aquela probabilidade. Devemos, para todos os efeitos práticos, considerar-nos tão ameaçados como os nossos vizinhos.
Perante este estado de coisas a primeira tentação é a securitária: tentar garantir a ilusão de segurança através da multiplicação de controlos, de restrições às liberdades cívicas, da coacção de todos os suspeitos, por leve que seja a suspeita (ou ainda que ela se chame apenas medo).
É evidente que a segurança é uma dimensão que terá de ser reforçada, nomeadamente através da vertente dos serviços de informação — nenhuma outra opção seria razoável perante uma ameaça credível, próxima e grave. Mas é também evidente que os cidadãos devem manter-se atentos perante eventuais atentados às liberdades. Se a defesa da sociedade aberta se traduzir na destruição dos seus valores, não haverá nada que valha a pena preservar. Não há receitas para encontrar o ponto de equilíbrio entre segurança e liberdade. Mas esse debate deverá ser um dos que devemos manter mais vivos nos próximos tempos. A segurança, a autoridade e a eficácia têm de coexistir com o escrutínio e o debate democrático e com o exercício pleno das liberdades. A abertura das sociedades democráticas europeias pode ser uma fragilidade perante o terrorismo, mas o seu fechamento seria a sua morte.
A vigilância cidadã não pode porém ficar por aqui. A forma mais eficaz de aumentar a segurança é a vigilância quotidiana de todos. Como aprenderam a seu tempo os britânicos, os espanhóis, os italianos. Não a paranóia, mas uma vigilância colectiva e partilhada, feita por todos em nome de todos. Há um valor precioso que aqui abandonamos, tristemente: a despreocupação em que até hoje, com altos e baixos, apesar de tudo pudemos viver nas nossas cidades.
A acção vigilante e democrática dos cidadãos europeus tem de se estender a uma terceira vertente: o diálogo com os outros povos, os migrantes, os muçulmanos, os indivíduos de outras cores, outras crenças e culturas, que muitos tentarão demonizar. Um risco mortal seria considerar que, se a Europa está sob ameaça, os não-europeus são o inimigo, ou outro paralogismo semelhante.
No respeito pelo outro floresceram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade sobre que construímos as nossas sociedades. É essa a nossa alma, a nossa razão de ser, e não podemos permitir que ela seja substituída pelo terror e pelo ódio.
O terrorismo não é apenas — com alguns pretendem — um problema de polícia. É um problema político maior, que exige empenhamento político, a todos os níveis, de todos nós. Que não se negoceia com terroristas é um facto aceite. Mas não se pode confundir essa fronteira com a necessidade de destruir, pela argumentação, pela acção política, pela acção solidária, social e cultural as razões que fazem com que seja possível recrutar jovens para matar os nossos filhos.
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