por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Janeiro de 2004
Crónica 1/2004
É preciso alterar os hábitos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra.
O Natal voltou mais uma vez a trazer, apesar de todas as crises, a habitual avalanche de brinquedos, bonecos, jogos e passatempos, que lançámos diligentemente sobre as nossas crianças e que ajudámos a lançar sobre as crianças dos outros.
A prova disso não vem só da experiência limitada que podemos ter das árvores de Natal e dos quartos de brinquedos da nossa família e amigos (ainda que ela, só por si, possa ser suficientemente convincente) mas do ambiente dos centros comercias e hipermercados e das intensas campanhas de publicidade destinadas às crianças que por esta época invadem as televisões.
Que um excesso de brinquedos — ou de qualquer outra coisa — não traz quaisquer benefícios às crianças já se sabe. E parece até provável que tenha alguns inconvenientes — porque a quantidade acaba por desvalorizar o objecto e acaba por gerar desinteresse e desperdício, porque esse desperdício se torna um hábito, porque as crianças não dedicam o tempo suficiente a cada jogo para o descobrir e se envolver com ele. Para mais, a ênfase no brinquedo industrial e a adesão às campanhas de acumulação ou da sua eterna substituição pelos modelos mais recentes ou mais evoluídos e pelos últimos acessórios acaba por dar origem a relações superficiais com os brinquedos que não têm nem riqueza emocional, nem conteúdo pedagógico, nem fornecem o estímulo do imaginário com que desculpamos a nossa prodigalidade. Claro que há brinquedos e brinquedos e que ter vinte livros não é a mesma coisa que ter vinte Barbies, mas o facto é que com frequência enterramos as nossas crianças num mundo de superabundância que sabemos que não pode promover nada de bom.
Pode dizer-se que este panorama descreve na realidade o mundo dos ricos e que existem inúmeras crianças para quem nada disto é assim — e isso é verdade. Mas é também verdade que, devido à necessidade de alargamento do mercado infantil e à redução dos custos industriais, o número de crianças para quem isto é assim é cada vez maior, pelo menos no mundo industrializado (sendo que, para maior ironia, isso às vezes acontece graças ao trabalho infantil de outra zona do mundo).
Como gerir este excesso? A primeira resposta é que é necessário alterar alguns hábitos quase obscenos de consumo do supérfluo que corrompem os conceitos de dádiva e de comunhão que deviam estar no centro dos festejos desta quadra — e que transcendem qualquer ideal religioso.
Outra ordem de resposta, de índole mais prática, é que é possível aprender a transformar o influxo de presentes num programa de verdadeira troca — ensinando as crianças a oferecer os brinquedos com que já não brincam a crianças que deles precisam. Se é verdade que existem em Lisboa instituições de solidariedade social que recebem tantos brinquedos de doadores que são obrigados a recusar alguns, é verdade que há instituições menos afortunadas, na província e noutras regiões do mundo.
Se conseguirmos transformar o Natal num momento do ano em que oferecemos aos nossos filhos o prazer de dar (dar verdadeiramente, algo que é seu) a alguém a quem a prenda pode proporcionar alguma felicidade, ter-lhes-emos dado o melhor que é possível oferecer.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário