por José Vítor Malheiros
Publicado em Interact - Revista Online de Arte, Cultura e Tecnologia, nº 6 (Tema: Clonagem) a 1 de Julho de 2002
http://www.interact.com.pt/memory/interact6/
A perturbação da igualdade (ou os clones à nossa volta)
Uma das funções básicas do cérebro é o reconhecimento. Saber se já se viu antes o que se viu, separar entre conhecido e desconhecido, discriminar entre céu e mar, terra e água, ali e além. Para isso é necessário possuir a percepção, distinguir sinal e ruído, fundo e objecto, regra e excepção, velho e novo, rotina e criação, cara e multidão, isolar uma informação e compará-la com uma história, uma memória.
O reconhecimento é uma condição essencial da segurança. Identificar o estranho, o perigo, a mancha na paisagem, o ruído no silêncio, o cheiro no vento, a marca na árvore, a pegada na terra e ligar-lhe um sentimento, uma história, inseri-lo numa narrativa passada e futura.
O nosso cérebro é uma máquina de identificar padrões, semelhanças e diferenças, repetições e ciclos, grupos e classes. É com isto que fazemos o mundo que vive dentro da nossa cabeça. Fazemo-lo com objectos, com pessoas, com conceitos, com sensações. Somos uma máquina de evocar memórias, onde cada informação possui imensas notas de rodapé e faz parte de uma teia, um hipertexto de histórias passadas, de humores e emoções, de classificações. Comparamos essas histórias sem cessar e depois classificamos as próprias comparações, as relações entre as coisas tornam-se elas próprias objecto de análise e comparação, de classificação e padronização, de agrupamento.
Pensar é distinguir, separar e organizar.
Esta é a razão essencial porque o clone é algo tão perturbador. As diferenças do mundo são essenciais à identificação e esta é essencial à segurança. Se as características do mundo à nossa volta se tornam indistinguíveis, inclassificáveis, se as coisas que são diferentes aparecem como iguais, o que nos garante que podemos continuar a reconhecer o mundo, a escolher e a decidir? Como podemos continuar a viver nele? É a própria realidade material do mundo, a sua existência como coisa objectiva que é posta em causa e, com elas, a nossa própria realidade.
Um mundo onde uma rua pode ser igual a outra, onde o meu vizinho pode ser igual ao meu inimigo, onde o cheiro do pão é igual ao cheiro do metropolitano é um mundo de loucura, onde tudo e nada é possível, onde não há razão, o mundo do caos.
O gémeo já é perturbador, mas é uma excepção, um acidente, uma raridade. Um acidente que pode ser esquecido ou ignorado e que tem limites estreitos. Dois gémeos? Três? Quatro? Além de que, quantos mais são os gémeos, menos parecidos são.
Uma pessoa é uma singularidade, um marco geodésico, uma âncora na realidade, uma referência, mas a eventual ubiquidade do clone gera um labirinto, uma sopa de letras sem sentido.
A perturbação do clone vem do facto de que não sabemos se este é mesmo este ou aquele ou mesmo aqueloutro.
A fragilidade da semelhança (ou os clones entre nós)
É verdade que a sociedade democrática louva a igualdade desde a Revolução Francesa, mas essa igualdade (de direitos) é, no fundo, a garantia da diferença, da variedade, da sociodiversidade. Não um apego ou uma defesa da igualdade, mas a garantia de que todos (variedade) podem chegar a qualquer sítio.
A diversidade é um valor em termos biológicos. A biodiversidade no seio de uma população garante que essa população (enquanto população) pode resistir a diferentes agressões. Alguns indivíduos podem ser mortos por uma infecção, mas não todos. Enquanto que a igualdade genética (uma comunidade de clones) constituiria um risco: um infecção capaz de destruir um indivíduo poderia destruir toda a comunidade. Existem razões biológicas para preferir a diversidade à igualdade.
Se todos procuramos a segurança do igual e do conhecido, procuramos também a excitação do novo e do diferente. A igualdade promete-nos a segurança, mas a diferença garante-nos a liberdade.
O homem é o único animal que procura activamente o diferente e que tenta inventá-lo através da arte, do pensamento, da ciência, da técnica. A liberdade é o caminho em direcção à diferença.
O pecado da criação (ou os clones feitos por nós)
A igualdade do clone tem um factor suplementar de perturbação: a artificialidade. A igualdade do clone é uma igualdade artificial, criada pelo homem, um truque roubado aos deuses, uma brincadeira de demiurgo que pode correr mal, como as brincadeiras dos aprendizes de feiticeiros. Confiamos na Natureza porque ela é velha e sábia, mas o homem (o "homo technicus" em particular) é demasiado jovem, atrevido e inexperiente. A Natureza gera pequenas mudanças e vai-as testando, aos poucos, filtrando pela selecção o que se revela mais adaptado. É conservadora. O homem descobriu a capacidade de introduzir roturas, explosões, revoluções. É disruptivo.
A Natureza sempre existiu e sempre existirá, mas o homem talvez seja um acidente, pronto a ser varrido à primeira trangressão das regras cósmicas não escritas do equilíbrio. Depois de ser expulso do Paraíso por querer saber tanto como o Deus Omnisciente, será o homem expulso de novo se tentar criar a mesma criação que o Deus Criador? E para onde será expulso?
E teremos nós a tentação de olharmos para os nossos clones como a nossa criação? De cima para baixo? Os clones que fazemos iguais a nós poderão ser iguais a nós quando fomos nós que os fizemos?
Não carecem dessa originalidade que é talvez a nossa alma? Não carecem dessa bênção do acaso que é talvez a luz da vida?
Os clones são nossos irmãos? Filhos? Motoristas? Escravos? Rebelar-se-ão porque os desenhámos? Não será melhor controlá-los de alguma forma? (É que eles poderão ser iguais, mas todos sabemos que são diferentes.) Representam o que de melhor há em nós? Serão melhores que nós? Pensarão que são melhores que nós?
A desvalorização da quantidade (ou os clones em série)
Se os podemos fazer em série, será que podem ter o mesmo valor que um indivíduo original? É como querer vender uma serigrafia pelo preço de uma pintura.
Já sabemos que só são iguais no aspecto, que são originais em tudo o resto mas... serão? Não parecem.
E é preciso saber com quem estamos a falar. Os clones podem ser ilegais, feitos a partir de material genético roubado, copiado sem autorização, ou só ligeiramente plagiado: uns olhos, uma queda para o desenho. ("Um senhor tão educado e afinal era plagiado").
Será conveniente controlar o número de cópias de um dado ADN, como nas gravuras (pelas melhores razões, para evitar que um determinado modelo se torne prevalente e reduza a nossa biodiversidade)?
Claro que um clone é um ser humano, não é um objecto, mas... O problema não somos nós, são os outros: todos vão olhar para eles como se tivessem o cabelo verde ou a pele castanha.
O melhor, pelo sim pelo não, é começar a fazê-los discretamente, sem dizer nada a ninguém, como se nascessem pelos métodos tradicionais. Quando chegarem à idade de compreender contamos-lhes de onde vieram, como um sórdido segredo de família. Mas é melhor não dizerem nada a ninguém.
A perturbação da igualdade (ou os clones à nossa volta)
Uma das funções básicas do cérebro é o reconhecimento. Saber se já se viu antes o que se viu, separar entre conhecido e desconhecido, discriminar entre céu e mar, terra e água, ali e além. Para isso é necessário possuir a percepção, distinguir sinal e ruído, fundo e objecto, regra e excepção, velho e novo, rotina e criação, cara e multidão, isolar uma informação e compará-la com uma história, uma memória.
O reconhecimento é uma condição essencial da segurança. Identificar o estranho, o perigo, a mancha na paisagem, o ruído no silêncio, o cheiro no vento, a marca na árvore, a pegada na terra e ligar-lhe um sentimento, uma história, inseri-lo numa narrativa passada e futura.
O nosso cérebro é uma máquina de identificar padrões, semelhanças e diferenças, repetições e ciclos, grupos e classes. É com isto que fazemos o mundo que vive dentro da nossa cabeça. Fazemo-lo com objectos, com pessoas, com conceitos, com sensações. Somos uma máquina de evocar memórias, onde cada informação possui imensas notas de rodapé e faz parte de uma teia, um hipertexto de histórias passadas, de humores e emoções, de classificações. Comparamos essas histórias sem cessar e depois classificamos as próprias comparações, as relações entre as coisas tornam-se elas próprias objecto de análise e comparação, de classificação e padronização, de agrupamento.
Pensar é distinguir, separar e organizar.
Esta é a razão essencial porque o clone é algo tão perturbador. As diferenças do mundo são essenciais à identificação e esta é essencial à segurança. Se as características do mundo à nossa volta se tornam indistinguíveis, inclassificáveis, se as coisas que são diferentes aparecem como iguais, o que nos garante que podemos continuar a reconhecer o mundo, a escolher e a decidir? Como podemos continuar a viver nele? É a própria realidade material do mundo, a sua existência como coisa objectiva que é posta em causa e, com elas, a nossa própria realidade.
Um mundo onde uma rua pode ser igual a outra, onde o meu vizinho pode ser igual ao meu inimigo, onde o cheiro do pão é igual ao cheiro do metropolitano é um mundo de loucura, onde tudo e nada é possível, onde não há razão, o mundo do caos.
O gémeo já é perturbador, mas é uma excepção, um acidente, uma raridade. Um acidente que pode ser esquecido ou ignorado e que tem limites estreitos. Dois gémeos? Três? Quatro? Além de que, quantos mais são os gémeos, menos parecidos são.
Uma pessoa é uma singularidade, um marco geodésico, uma âncora na realidade, uma referência, mas a eventual ubiquidade do clone gera um labirinto, uma sopa de letras sem sentido.
A perturbação do clone vem do facto de que não sabemos se este é mesmo este ou aquele ou mesmo aqueloutro.
A fragilidade da semelhança (ou os clones entre nós)
É verdade que a sociedade democrática louva a igualdade desde a Revolução Francesa, mas essa igualdade (de direitos) é, no fundo, a garantia da diferença, da variedade, da sociodiversidade. Não um apego ou uma defesa da igualdade, mas a garantia de que todos (variedade) podem chegar a qualquer sítio.
A diversidade é um valor em termos biológicos. A biodiversidade no seio de uma população garante que essa população (enquanto população) pode resistir a diferentes agressões. Alguns indivíduos podem ser mortos por uma infecção, mas não todos. Enquanto que a igualdade genética (uma comunidade de clones) constituiria um risco: um infecção capaz de destruir um indivíduo poderia destruir toda a comunidade. Existem razões biológicas para preferir a diversidade à igualdade.
Se todos procuramos a segurança do igual e do conhecido, procuramos também a excitação do novo e do diferente. A igualdade promete-nos a segurança, mas a diferença garante-nos a liberdade.
O homem é o único animal que procura activamente o diferente e que tenta inventá-lo através da arte, do pensamento, da ciência, da técnica. A liberdade é o caminho em direcção à diferença.
O pecado da criação (ou os clones feitos por nós)
A igualdade do clone tem um factor suplementar de perturbação: a artificialidade. A igualdade do clone é uma igualdade artificial, criada pelo homem, um truque roubado aos deuses, uma brincadeira de demiurgo que pode correr mal, como as brincadeiras dos aprendizes de feiticeiros. Confiamos na Natureza porque ela é velha e sábia, mas o homem (o "homo technicus" em particular) é demasiado jovem, atrevido e inexperiente. A Natureza gera pequenas mudanças e vai-as testando, aos poucos, filtrando pela selecção o que se revela mais adaptado. É conservadora. O homem descobriu a capacidade de introduzir roturas, explosões, revoluções. É disruptivo.
A Natureza sempre existiu e sempre existirá, mas o homem talvez seja um acidente, pronto a ser varrido à primeira trangressão das regras cósmicas não escritas do equilíbrio. Depois de ser expulso do Paraíso por querer saber tanto como o Deus Omnisciente, será o homem expulso de novo se tentar criar a mesma criação que o Deus Criador? E para onde será expulso?
E teremos nós a tentação de olharmos para os nossos clones como a nossa criação? De cima para baixo? Os clones que fazemos iguais a nós poderão ser iguais a nós quando fomos nós que os fizemos?
Não carecem dessa originalidade que é talvez a nossa alma? Não carecem dessa bênção do acaso que é talvez a luz da vida?
Os clones são nossos irmãos? Filhos? Motoristas? Escravos? Rebelar-se-ão porque os desenhámos? Não será melhor controlá-los de alguma forma? (É que eles poderão ser iguais, mas todos sabemos que são diferentes.) Representam o que de melhor há em nós? Serão melhores que nós? Pensarão que são melhores que nós?
A desvalorização da quantidade (ou os clones em série)
Se os podemos fazer em série, será que podem ter o mesmo valor que um indivíduo original? É como querer vender uma serigrafia pelo preço de uma pintura.
Já sabemos que só são iguais no aspecto, que são originais em tudo o resto mas... serão? Não parecem.
E é preciso saber com quem estamos a falar. Os clones podem ser ilegais, feitos a partir de material genético roubado, copiado sem autorização, ou só ligeiramente plagiado: uns olhos, uma queda para o desenho. ("Um senhor tão educado e afinal era plagiado").
Será conveniente controlar o número de cópias de um dado ADN, como nas gravuras (pelas melhores razões, para evitar que um determinado modelo se torne prevalente e reduza a nossa biodiversidade)?
Claro que um clone é um ser humano, não é um objecto, mas... O problema não somos nós, são os outros: todos vão olhar para eles como se tivessem o cabelo verde ou a pele castanha.
O melhor, pelo sim pelo não, é começar a fazê-los discretamente, sem dizer nada a ninguém, como se nascessem pelos métodos tradicionais. Quando chegarem à idade de compreender contamos-lhes de onde vieram, como um sórdido segredo de família. Mas é melhor não dizerem nada a ninguém.
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