por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Janeiro de 2004
Crónica 2/2004
A metáfora do mensageiro é perigosa porque ela transmite a imagem de um jornalista irresponsabilizável.
No debate à volta do caso Casa Pia e do papel da imprensa deu-se uma erupção da metáfora do jornalista como mensageiro. A limitação da imagem é evidente para os oficiais do ofício, mas convém esclarecer os mal-entendidos que possa gerar no público em geral.
Os jornalistas não são mensageiros porque o seu papel não consiste em transportar de um lugar para outro — das folhas de um processo para as páginas de um jornal, por exemplo — uma dada mensagem. Um jornalista não é um estafeta reduzido a um papel de mero transporte, nem um pé de microfone.
O papel dos jornalistas não é — não deve ser — o de reproduzir as informações que recebem e dar-lhes projecção, mas sim o de divulgar as informações que possuem relevância social, que permitem que os cidadãos conheçam, compreendam e possam agir sobre o mundo que os rodeia.
É claro que isto se presta a diversas interpretações e subjectividades — o que é o interesse público? que assuntos merecem ser objecto de notícia? que limites deve haver a essa divulgação? — e as formas como os critérios dos jornalistas são criados e usados são há décadas objecto de intenso estudo científico e debate ético, que deram origem a uma razoável produção de textos normativos. Mas a questão fundamental é que os jornalistas, sendo mediadores porque estabelecem uma mediação entre leitores e sociedade, são produtores de informação e possuem o dever de escolher, filtrar e validar as notícias que dão — a partir da informação que recolhem activamente ou que recebem passivamente — e até de traduzir, descodificar, explicar, enquadrar ou mesmo comentar as notícias que o exijam. São os autores das notícias.
É precisamente porque um jornalista não é um mensageiro que ele é responsável — e deve ser responsabilizado — pelas informações que produz e divulga.
A metáfora do mensageiro é perigosa porque ela transmite a imagem de um jornalista irresponsabilizável, cujo papel é apenas o de reflectir especularmente e acriticamente a realidade.
A invasão dos jornais por esta imagem sobreveio ao lançamento da proposta da maioria PSD-PP de reduzir a liberdade de imprensa consignada na Constituição, supostamente de forma a evitar a repetição de algumas atitudes condenáveis ocorridas na cobertura do caso Casa Pia.
A tentação da redução das liberdades é uma infeliz marca dos tempos.
Vale a pena afirmar que a liberdade é um valor de suprema importância e que só deve ser reduzida (momentaneamente e de forma limitada) se apenas dessa forma se conseguir atingir algum outro objectivo, igualmente ou mais importante para a sociedade.
A única razão para pretender limitar a liberdade de imprensa e para ameaçar os jornalistas com mais pesadas sanções é a vontade de instaurar um clima que os torne mais receosos de executar o papel de fiscalização dos poderes.
É tanto mais claro que essa é a intenção quanto as leis que existem — e que permitem responsabilizar jornalistas e órgãos de comunicação social — não são usadas (nem mesmo pelo Ministério Público) mesmo quando há uma patente situação de abuso, inverdade, manipulação ou difamação por parte dos media. O poder não quer melhor jornalismo.
É evidente que o objectivo do projecto PSD-PP não é obter uma reparação para os eventuais ofendidos pela imprensa, o que a credibilizaria e reforçaria o seu papel, mas tentar calar todos os jornalistas com uma lei que pretende até proibi-los de publicar algo que possa prejudicar "a formação das crianças e dos jovens" (como diz o projecto do PSD-PP!).
A ideia, propagada nos últimos tempos graças ao apoio da pior imprensa e dos seus abusos, de que o "poder dos jornalistas" exige leis mais musculadas, é um perigo para a democracia. Nada é mais prejudicial à "formação das crianças e dos jovens".
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