por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Janeiro de 2004
Crónica 3/2004
Uma teoria garante que os botões dos semáforos são parte de uma discreta e tenebrosa campanha para convencer os cidadãos da sua própria irrelevância.
Chego à beira do passeio e espero que o sinal dos peões passe para vermelho. Espero. Passados uns minutos reparo que, no poste do semáforo do lado de lá, há uma caixinha com um botão.
Do meu lado há uma igual. Carrego no botão. O sinal continua vermelho para os peões e os carros continuam a passar. Juntam-se mais pessoas. Os recém-chegados vão carregando no botão. "Será que isto funciona?", diz alguém a meia-voz, para ninguém em especial. Ao fim de uns minutos, aproveitando as abertas no tráfego automóvel, vamos atravessando todos, com sinal vermelho. Já no passeio do lado de lá olho para trás: o semáforo dos peões ficou verde mas já não há ninguém para atravessar.
Acabei de presenciar um dos grandes mistérios da vida urbana: os semáforos com botão para os peões. Em teoria, destinam-se a facilitar o tráfego — se não houver peões para atravessar, os carros não são obrigados a parar; se houver peões, basta accionar o botão para estes poderem passar em segurança — mas é evidente que essa não é a função. Destinar-se-ão a testar os limites da paciência humana? Serão um meio clandestino de recolha de impressões digitais para enviar para os EUA?
A experiência quotidiana nunca me conseguiu convencer da existência de qualquer relação causa-efeito entre o accionar do botão e a passagem do botão a verde. Uma teoria que começa a ganhar adeptos garante que os botões dos semáforos não são senão parte de uma tenebrosa campanha secreta para convencer os cidadãos da sua própria irrelevância, destinada a fomentar a indiferença cívica, a alimentar a abstenção eleitoral e a concentrar as decisões nas mãos de cada vez menos. É verdade que é uma teoria conspirativa, mas não é impossível que haja conspirações pois não?
Há quem diga que se trata de uma mera questão de poder, que os automobilistas nunca estiveram dispostos a abdicar da sua supremacia e a vergar-se a um gesto de simples peões e que teriam imposto aos técnicos do trânsito a total desconexão de todos os botões, mantidos apenas por uma questão de aparência.
Do lado dos técnicos há, pelo contrário, quem garanta que a coisa funciona mesmo, mas tem de funcionar assim, ao ritmo da Santa Paciência e não da Senhora dos Aflitos: senão, dizem, poderia haver brincadeiras, poderia haver quem carregasse no botão sem querer atravessar... A lógica da resposta escapa-nos. Quem quiser carregar no botão para chatear os automobilistas pode fazê-lo de qualquer forma. O compasso de espera entre acção e efeito (se efeito existe) é até a melhor maneira de garantir a impunidade aos brincalhões: quando o semáforo obriga os carros a parar já eles estão a quilómetros.
O que é verdade é que, da maneira que os botões funcionam, não funcionam: depois de um tempo de espera razoável toda a gente atravessa com vermelho, com os riscos e as perturbações de trânsito inerentes. Se é verdade que a gestão do tráfego tem como objectivo equilibrar dois objectivos conflituantes, fluidez e segurança, os semáforos de botão não permitem nem uma coisa nem outra. Porque a maioria dos peões carrega de facto no botão (prejudicando a fluidez), mas a mesma maioria atravessa ainda no vermelho (gerando insegurança). A única opção razoável seria a passagem imediata a amarelo (para os carros) quando se acciona o botão, com a subsequente passagem a vermelho, garantindo um intervalo mínimo de x minutos entre sinais vermelhos para que o tráfego automóvel não seja prejudicado. Mas é claro que isso seria levar demasiado em conta as necessidades dos peões numa cidade que se vai transformando numa rede de auto-estradas e viadutos com casino no meio. Entretanto, com a crónica falta de passadeiras e o desrespeito das que existem pelos carros, faça a única coisa razoável, como se diz em Nova Iorque: quando o semáforo diz "Don't Walk", obedeça. Corra.
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