por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Maio de 2012
Crónica 18/2012Saudemos aqueles que sentiram o dever de dizer alto e bom som que o Governo vai nu
A ausência dos militares de Abril, de Mário Soares e de Manuel Alegre nas comemorações oficiais do 25 de Abril suscitou um apoio limitado à esquerda e uma vaga de censuras, discretas ou efusivas, que cobriu um amplo sector do leque político. É verdade que, tacticamente, a posição é difícil de gerir. (Basta pensar como se descalça a bota: o que será necessário, agora, para que estes mesmos protagonistas regressem às comemorações? Nunca mais vão regressar? Se regressarem, isso não será interpretado como um aval ao Governo do momento?) Mas é inegável que, como gesto político, representou uma importante condenação simbólica do regime economicamente ultraliberal e politicamente autoritário que o actual Governo tenta subrepticiamente impor, a coberto da situação financeira e das imposições da troika.
Como todos os gestos políticos, este foi também uma aposta. Se tivesse acendido as consciências e suscitado outras condenações, poderia ter tido algum efeito e a sua avaliação seria hoje diversa. Mas não teve, nem suscitou. No entanto, por muito errado tacticamente que o gesto possa ter sido, é de saudar aqueles que sentiram que tinham o dever de dizer alto e bom som que o Governo vai nu. Às vezes, os erros dos homens são mais dignos de louvor que os seus êxitos.
As críticas dirigidas à Associação 25 de Abril e a Mário Soares têm a ver com o facto de, segundo os seus críticos, ser falsa e injusta a acusação segundo a qual a actuação do Governo “deixou de reflectir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril configurado na Constituição da República Portuguesa”. Segundo estas vozes, vivendo nós em normalidade democrática, com partidos políticos e eleições, e saindo o actual Governo de eleições, não existe qualquer razão para a condenação moral e política dos militares e de Mário Soares, podendo haver unicamente discordâncias, que se devem dirimir na arena política do Parlamento e das campanhas.
É curiosa esta dicotomia: ou há democracia ou não há. E em Portugal há. A prova? Temos partidos políticos, eleições, Parlamento, liberdade de expressão. Só que as coisas não são tão simples como isso. Se há pedras de toque para a democracia, há sempre questões de grau. E a democracia, mesmo quando existe formalmente, nem sempre está realmente viva. Às vezes respira mas está apenas ligada à máquina. Como em Portugal.
Portugal hoje é um bom exemplo de uma situação em que a democracia formal não representa sequer formalmente a vontade do povo. A própria direita aceita aliás sem rebuço que Portugal vive hoje em regime de protectorado, devendo sujeitar-se às imposições da troika. Dizer que isto é democracia representa uma curiosa interpretação, que corresponde a dizer que um prisioneiro que pode escolher a cor das paredes da sua cela é, no fundo, uma pessoa livre e não pode por isso mencionar sequer a sua falta de liberdade.
É aliás curioso que, quando Jürgen Habermas fala do “domínio pós-democrático“ que se vive na Europa, haja um assentimento unânime, mas que, quando alguém tenta aplicar essa reflexão no terreno real da política nacional, a histeria se generalize.
Para além do regime de protectorado (ou desprotectorado...) é difícil dizer que vivemos numa democracia quando tanta coisa no sistema político está artilhado, trucado, viciado, com mais batotas que regras. É possível falar de democracia quando a Europa que comanda os nossos gestos é dirigida por órgãos que não elegemos? Quando os mercados sem rosto decidem das nossas políticas através dos nossos ministros, que irão contratar daqui a três anos?
As eleições, onde elegemos partidos com base em promessas e programas eleitorais rasgados com a maior desfaçatez no dia seguinte, representam a vontade do povo? Podemos pelo menos fazer a pergunta? Alguém votou o fim dos subsídios de férias e Natal? Era inevitável? Alguém nos disse isso antes das eleições? Ou mentiram-nos? Os deputados submetidos à disciplina de voto representam o povo? Os deputados pagos pelas grandes empresas defendem o interesse público? Os deputados respondem aos eleitores, quando nem sequer podemos riscar os que sabemos que são corruptos dos boletins? A justiça impõe o primado da lei, quando condena menores que copiam canções na Internet e sem-abrigo que roubam chocolates e deixa de fora as maiores facínoras? O fisco leva a cabo a função distributiva e promotora de justiça social que a Constituição determina quando cai sobre os trabalhadores e deixa os ricos pôr as fortunas nos off-shores? A liberdade de expressão e manifestação existe quando a PSP diz que um ajuntamento de DUAS ou mais pessoas necessita de autorização prévia? Esta democracia não tem pelo menos umas parecenças com uma ditadura? Não, não digo que seja ela, é claro que se trata de outra pessoa. Mas não há ali umas parecenças de família, a esta luz, quando nos olha de lado? (jvmalheiros@gmail.com)
Como todos os gestos políticos, este foi também uma aposta. Se tivesse acendido as consciências e suscitado outras condenações, poderia ter tido algum efeito e a sua avaliação seria hoje diversa. Mas não teve, nem suscitou. No entanto, por muito errado tacticamente que o gesto possa ter sido, é de saudar aqueles que sentiram que tinham o dever de dizer alto e bom som que o Governo vai nu. Às vezes, os erros dos homens são mais dignos de louvor que os seus êxitos.
As críticas dirigidas à Associação 25 de Abril e a Mário Soares têm a ver com o facto de, segundo os seus críticos, ser falsa e injusta a acusação segundo a qual a actuação do Governo “deixou de reflectir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril configurado na Constituição da República Portuguesa”. Segundo estas vozes, vivendo nós em normalidade democrática, com partidos políticos e eleições, e saindo o actual Governo de eleições, não existe qualquer razão para a condenação moral e política dos militares e de Mário Soares, podendo haver unicamente discordâncias, que se devem dirimir na arena política do Parlamento e das campanhas.
É curiosa esta dicotomia: ou há democracia ou não há. E em Portugal há. A prova? Temos partidos políticos, eleições, Parlamento, liberdade de expressão. Só que as coisas não são tão simples como isso. Se há pedras de toque para a democracia, há sempre questões de grau. E a democracia, mesmo quando existe formalmente, nem sempre está realmente viva. Às vezes respira mas está apenas ligada à máquina. Como em Portugal.
Portugal hoje é um bom exemplo de uma situação em que a democracia formal não representa sequer formalmente a vontade do povo. A própria direita aceita aliás sem rebuço que Portugal vive hoje em regime de protectorado, devendo sujeitar-se às imposições da troika. Dizer que isto é democracia representa uma curiosa interpretação, que corresponde a dizer que um prisioneiro que pode escolher a cor das paredes da sua cela é, no fundo, uma pessoa livre e não pode por isso mencionar sequer a sua falta de liberdade.
É aliás curioso que, quando Jürgen Habermas fala do “domínio pós-democrático“ que se vive na Europa, haja um assentimento unânime, mas que, quando alguém tenta aplicar essa reflexão no terreno real da política nacional, a histeria se generalize.
Para além do regime de protectorado (ou desprotectorado...) é difícil dizer que vivemos numa democracia quando tanta coisa no sistema político está artilhado, trucado, viciado, com mais batotas que regras. É possível falar de democracia quando a Europa que comanda os nossos gestos é dirigida por órgãos que não elegemos? Quando os mercados sem rosto decidem das nossas políticas através dos nossos ministros, que irão contratar daqui a três anos?
As eleições, onde elegemos partidos com base em promessas e programas eleitorais rasgados com a maior desfaçatez no dia seguinte, representam a vontade do povo? Podemos pelo menos fazer a pergunta? Alguém votou o fim dos subsídios de férias e Natal? Era inevitável? Alguém nos disse isso antes das eleições? Ou mentiram-nos? Os deputados submetidos à disciplina de voto representam o povo? Os deputados pagos pelas grandes empresas defendem o interesse público? Os deputados respondem aos eleitores, quando nem sequer podemos riscar os que sabemos que são corruptos dos boletins? A justiça impõe o primado da lei, quando condena menores que copiam canções na Internet e sem-abrigo que roubam chocolates e deixa de fora as maiores facínoras? O fisco leva a cabo a função distributiva e promotora de justiça social que a Constituição determina quando cai sobre os trabalhadores e deixa os ricos pôr as fortunas nos off-shores? A liberdade de expressão e manifestação existe quando a PSP diz que um ajuntamento de DUAS ou mais pessoas necessita de autorização prévia? Esta democracia não tem pelo menos umas parecenças com uma ditadura? Não, não digo que seja ela, é claro que se trata de outra pessoa. Mas não há ali umas parecenças de família, a esta luz, quando nos olha de lado? (jvmalheiros@gmail.com)
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