quinta-feira, maio 31, 2012

Comentários aos princípios definidos por Kovach e Rosenstiel no livro “The Elements of Journalism” (2001 e 2007)



Contributo para o Projecto Jornalismo e Sociedade:

Princípios e desafios do jornalismo na época dos media digitais em rede (CIES-IUL – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL, Instituto Universitário de Lisboa)

por José Vítor Malheiros

Comentários de ordem geral

Os princípios são pouco específicos do jornalismo. Quase todos se poderiam aplicar a cientistas ou juízes, por exemplo.
Os princípios não se referem à tarefa específica do jornalismo (descrever a realidade) ainda que dedique vários princípios à maneira como os jornalistas devem levar a cabo essa tarefa não especificada.

Comentários ponto a ponto

1º - A primeira obrigação do jornalismo é para com a verdade
OK

2º - O jornalismo deve manter-se leal, acima de tudo, aos cidadãos
Este “acima de tudo” contraria o ponto 1. Afinal é acima de tudo ao serviço da verdade ou acima de tudo ao serviço dos cidadãos? Seria aceitável “O jornalismo deve manter-se leal aos cidadãos”, mas prefiro uma referência à sociedade e à cidadania a uma referência aos cidadãos, que poderia
PROPOSTA: O jornalismo deve manter-se leal aos cidadãos e ao interesse público.

3º - A essência do jornalismo assenta numa disciplina da verificação
Não gosto da “essência”. Parece que falamos de algo intangível e aqui parece-me que é bastante tangível. Trata-se de procedimentos, de critérios.
Podemos dizer algo mais do que “verificar”. Verificar pode ser fazer a mesma coisa duas vezes.
PROPOSTA: A prática do jornalismo assenta numa disciplina de validação da informação e no confronto de diferentes fontes.

4º - Aqueles que o exercem devem manter a sua independência em relação às pessoas e aos acontecimentos que relatam.
Primeira referência ao facto de que os jornalistas relatam algo.
Não gosto de “manter”. Parece-me demasiado passivo. Prefiro “preservar” porque sugere que a independência é um bem constantemente submetido a um ataque.
PROPOSTA: Aqueles que o exercem devem preservar a sua independência em relação às pessoas e aos acontecimentos que relatam.

5º - O jornalismo deve vigiar o poder de forma independente
Repete inultilmente o valor da independência, que já estava afirmado no ponto anterior.
Da maneira que está escrita não se sugere que esta é uma tarefa essencial do jornalista. Com a actual formulação pode interpretar-se que, quando o jornalista, uma vez por acaso, vigia o poder, o deve faer de forma independente.
Prefiro “os poderes”. Há muitos e devemos sublinhar esse facto.
PROPOSTA: O jornalismo deve vigiar os poderes de forma activa.

6º - O jornalismo deve proporcionar um fórum para a crítica e o compromisso públicos
Não gosto de “um fórum”. Há muitos fóruns, mesmo dentro do jornalismo. Dá uma ideia demasiado organizada do que é e deve ser o debate público.
Não gosto de “deve proporcionar”. O jornalismo deve fazer mais do que isso. Não apenas “proporcionar” o fórum mas “estimulá-lo”, “alimentá-lo”, “promovê-lo”.
O debate não é apenas crítica e compromisso. É também produção de ideias novas, confronto de modelos, etc.
PROPOSTA: O jornalismo deve estimular o debate público e a consolidação da opinião pública.

7º - O jornalismo deve esforçar-se por tornar relevante e interessante o que é significativo
Porquê aqui o “esforçar-se por” quando nos outros princípios somos muito mais peremptórios?
Porquê significativo? Tudo é significativo. Sejamos mais atrevidos. Há uma grande sobreposição entre relevância e importância e entre relevância e significado
PROPOSTA: O jornalismo deve tornar interessante o que é importante.

8º - O jornalismo deve produzir notícias abrangentes e proporcionadas
Muito redutor. Só notícias?
Não sei o que quer dizer “abrangente”.
Gosto de pluralidade. Tem uma ideia de complexidade e riqueza.
Acho que este princípio devia aparecer mais acima, ainda que a ordem não represente uma hierarquia. É a primeiro que diz o que o jornalismo faz. Os outros dizem como o deve fazer.
PROPOSTA: O jornalismo deve produzir narrativas equilibradas e que descrevam a realidade em toda a sua pluralidade.

9º - Aqueles que o exercem devem ser livres de seguir a sua própria consciência
OK
Só preferia repetir jornalismo em vez de usar o pronome.
PROPOSTA: Aqueles que exercem o jornalismo devem ser livres de seguir a sua própria consciência.

10º - Também os cidadãos têm direitos e responsabilidades, no que diz respeito à
informação noticiosa
Penso que é descabido que, num documento onde se alinham os princípios que os jornalistas devem respeitar, se definam responsabilidades para os cidadãos. Isso é para a Carta de Princípios dos Cidadãos, não para esta.
Quanto aos direitos dos cidadãos, toda esta carta (e não apenas este ponto) foi feita para os garantir.
PROPOSTA: Cortar na totalidade.

Sugestão de novos princípios

Sugestão 1
Há uma preocupação de equidade que o jornalismo não tem de facto e que deve ser uma das suas preocupações centrais: dar voz a quem não a tem, “go where the silence is”.

PROPOSTA: O jornalismo deve empenhar-se em dar voz e visibilidade a todos os cidadãos.

Sugestão 2
Os princípios que regem a prática do jornalismo devem ser públicos. O segredo não é a alma deste negócio.

PROPOSTA: O jornalismo pauta-se por critérios e procedimentos públicos e transparentes.

Sugestão 3
O século XXI é o século de um jornalismo que deixou de ser apenas top-down para ser também comunicação horizontal e bottom-up. A conversa deve fluir em todos os sentidos e o jornalismo, de forma a reconquistar a sua credibilidade, deve saber submeter-se ao escrutínio, à critíca e as correcções dos seus leitores/ouvintes/telespectadores.
A torre de marfim corporativa é algo que não é apenas mau para o negócio: é algo que contraria a missão do jornalismo.

PROPOSTA: O jornalismo deve oferecer-se à crítica dos cidadãos e ao debate público.

Sugestão 4
O jornalismo é algo que deixou de ser feito apenas por jornalistas. Mesmo quando se defende o valor específico do jornalismo feito por profissionais obrigados a regras deontológicas próprias, é inegável a importância da contribuição dos cidadãos na produção das narrativas jornalísticas e das opiniões (através de comentários, informações, críticas, etc.).
Há um novo jornalismo a fazer não para os cidadãos, nem por causa dos cidadãos, mas com os cidadãos.

PROPOSTA: O jornalismo deve facilitar a participação dos cidadãos na construção das narrativas noticiosas e da opinião pública.

José Vítor Malheiros
Maio 2012

Sem comentários: