Posfácio à 1ª edição do livro "Suite 605", de João Pedro Martins
A igualdade de direitos, a igualdade “perante a lei”, constitui o mínimo incompressível onde todas as pessoas decentes, de esquerda e de direita, coincidem.
1. No velho lema republicano “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” há dois termos que geram um alargado consenso, por vaga que possa ser a sua definição e por complexa que possa ser a sua concretização política: a liberdade e a fraternidade. É fácil admitir que todos queremos ser livres e que todos queremos ser fraternos. E podemos reformular a mesma proposição em linguagem moral e dizer que todos devemos ser livres e todos devemos ser fraternos. A primeira parte da proposição concede-nos algo que todos consideramos um valor inestimável, a liberdade, e a segunda, se não nos concede nada, também não nos obriga a nada, a não ser a uma declaração de intenções. E é até possível que o louvor à fraternidade nos conceda a garantia da fraternidade dos outros, o que pode ser vantajoso e não tem custos.
Mas se a liberdade e a fraternidade são relativamente consensuais, o terceiro termo do lema, a igualdade, sempre colocou grandes problemas. Antes de mais, de que igualdade se fala? Igualdade em quê? E será mesmo verdade que todos queremos ser iguais? Será que achamos que todos devemos ser iguais? E, se concordarmos com um objectivo de igualdade entre todos, como se faz isso?
Há quem defenda a igualdade como um objectivo social, algo que a sociedade deve almejar, e há quem defenda apenas a igualdade dos cidadãos “perante a lei”, a igualdade de direitos, a igualdade como ponto de partida, não se preocupando excessivamente com as desigualdades de facto, de estatuto, de condições de vida, que se desenvolvem posteriormente entre os cidadãos.
Uma das marcas da esquerda é a preocupação com a desigualdade social, com a qual a direita convive com maior à-vontade, considerando-a não só inevitável e inerente às diferentes capacidades e qualidades dos seres humanos, como até um factor promotor da ambição pessoal e do progresso. Mas a igualdade de direitos, a igualdade “perante a lei”, constitui aquele mínimo incompressível onde todas as pessoas decentes, de esquerda e de direita, coincidem. A igualdade perante a lei é algo que decorre das noções de decência, de honestidade, de fair play, de justiça que garantem a coesão do contrato que nos permite viver em sociedade.
2. O livro que acabaram de ler, “Suite 605”, é um livro sobre a desigualdade perante a lei, sobre a enorme desigualdade de direitos que existe na sociedade portuguesa entre os cidadãos mais ricos e os restantes, a coberto de um discurso igualitário.
Este livro mostra, com exemplos, com nomes e com números, a forma como o Estado, a administração fiscal, a Justiça e o Governo tratam de forma radicalmente diferente os cidadãos, conforme o nível de rendimentos que estes possuem, privilegiando e protegendo os mais poderosos, permitindo-lhes multiplicar o seu património e influência, à custa de uma sobrecarga fiscal dos restantes cidadãos.
A criação da Zona Franca da Madeira – o tema central deste livro – não possui qualquer racionalidade económica, como João Pedro Martins demonstra nestas páginas, citando especialistas, nem a mais remota justificação moral. O único objectivo da sua criação foi ajudar os mais ricos a fugir às suas obrigações fiscais. Ajudá-los a reduzir a sua quota-parte no financiamento das infra-estraturas nacionais, da educação, da investigação, da saúde, da segurança social, da defesa do ambiente, da preservaçção do património, da justiça, da segurança, da defesa. É irónico que tantos dos empresários que se servem desta batota fiscal tenham o descaramento de criticar o funcionamento do Estado, a sua ineficiência, e se atrevam a falar de “ética empresarial”.
O tema de “Suite 605” é tanto mais chocante quanto este benefício, de que os mais ricos usufruem, não é sequer conseguido à custa de ilegalidades – que envolveriam o risco de uma sanção. Criar uma empresa no offshore da Madeira e transferir para ela os lucros de cem empresas que operam no continente para não pagar impostos é legal e sem riscos. E isso é possível graças a leis aprovadas no nosso Parlamento, escritas pelos nossos governantes, assinadas pelos nossos Presidentes da República.
O que acontece ao dinheiro que o Estado perde desta forma, aos impostos não cobrados às empresas? O Estado vem buscá-lo aos nossos bolsos, aos trabalhadores por conta de outrem, usando as sobretaxas que for necessário.
Como aprendemos neste livro, a taxa média de IRC paga pelos milhares de empresas registadas na Zona Franca da Madeira é de 0,16% - um ultraje para os milhões de portugueses que pagam os seus impostos e que pagam as estradas onde circulam os empresários que têm as suas empresas sediadas em paraísos fiscais. Como escreve João Pedro Martins, a conclusão é clara: em Portugal “há uma elite corrupta que controla a economia e o poder político e que se recusa a pagar impostos”.
O artigo 13º da Constituição da República Portuguesa diz que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. É falso. Os cidadãos que não têm vergonha de registar as suas empresas onde não pagam impostos são favorecidos pela lei de uma forma que nenhum outro trabalhador alguma vez experimentou. Ou será que a administração fiscal portuguesa admitiria que um qualquer empregado declarasse (falsamente, como fazem as empresas) residência na Suite 605 e deixasse de pagar IRS?
3. Estranhamente, apesar de parecer existir um consenso político sobre os malefícios dos paraísos fiscais, eles continuam a sobreviver com o argumento de que, se fechássemos um, as empresas iriam para outro, noutro lugar do mundo. A resposta só pode ser uma: que vão! Para além da fuga aos impostos, os paraísos fiscais são o ecossistema por excelência do financiamento das ditaduras e das mafias, do tráfico de droga, da lavagem de dinheiro. Nenhum político honrado pode aceitar a sua existência.
O mal que os paraísos fiscais produzem não se resume ao dinheiro que estes empresários roubam à colectividade, que gera a fome e espalha a pobreza. A iniquidade de que eles são exemplo constitui um veneno mortal para a credibilidade do Estado, da democracia, da justiça e das empresas.
Quanto aos cidadãos, a cada um de nós, há algo que devemos fazer: exigir o encerramento da Zona Franca da Madeira, lutar pelo fim dos paraísos fiscais na União Europeia e no mundo e exigir saber que empresários portugueses exemplares fogem ao fisco usando estes paraísos que condenam ao inferno os contribuintes honestos.
José Vítor Malheiros
Setembro 2011
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