domingo, maio 20, 2007

Carla del Ponte, o braço armado das vítimas


por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 20 de Maio de 2007
Em Cena 7/2007

A última vez que a sua voz chegou às páginas dos jornais, para protestar com veemência, como faz tantas vezes, foi na semana passada, a propósito da tomada de posse da Sérvia como presidente do Conselho de Europa, a organização internacional com sede em Estrasburgo que tem como principal preocupação a promoção da democracia e a defesa dos direitos humanos na Europa.
O Conselho da Europa (não confundir com o Conselho da União Europeia) tem 46 países membros e cada um deles ocupa rotativamente a presidência durante um período de seis meses. A Sérvia foi aceite em 2003 e comprometeu-se perante os seus parceiros a respeitar os princípios impostos pelo Direito Internacional no domínio dos direitos humanos e, nomeadamente, a entregar à justiça internacional os acusados de crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e genocídio que se escondem no seu território depois da guerra dos últimos anos. Só que nem o fez, nem deu mostras de o querer fazer, nem os restantes 45 países pareceram perturbados com o facto e nem um único sugeriu, pelo menos, que talvez não fosse muito prestigiante para a organização que instituiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ter na sua liderança um país que o Tribunal Penal Internacional declarou, em Fevereiro, em violação da Convenção Internacional contra o Genocídio. Quem não ficou calada foi Carla del Ponte, procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, que enviou uma carta aberta aos países do Conselho da Europa onde declarava a presidência sérvia como um facto "extremamente embaraçoso" para a organização devido ao currículo do país.
As principais razões de Carla del Ponte contra a Sérvia chamam-se Ratko Mladic e Radovan Karadzic. Respectivamente ex-chefe militar e ex-presidente dos sérvios da Bósnia - acusados de crimes contra a humanidade, genocídio dos muçulmanos bósnios e atrocidades diversas e que, segundo Carla del Ponte, ainda se encontram na Sérvia, com a complacência, se não mesmo a protecção activa, dos actuais dirigentes sérvios. Mladic e Karadzic não são os únicos procurados pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) mas são os nomes mais visíveis da sua lista. Esta lista é aliás o que dá o título a um documentário que será apresentado no mês que vem em Nova Iorque, no âmbito do Festival Internacional de Cinema da organização Human Rights Watch: A Lista de Carla (La liste de Carla).
O documentário, da autoria do realizador suíço Marcel Schüpbach, centra-se na figura da procuradora e segue a sua sucessão de reuniões de trabalho e deslocações em comitiva com escolta, entre a Haia, Belgrado e Washington, sempre com a lista de procurados em pano de fundo. As críticas cinematográficas não foram entusiásticas mas o documentário reforça a imagem de tenacidade da jurista, quando faltam quatro meses para acabar o seu mandato no TPIJ, iniciado há oito anos. De facto, se se pode dizer algo de consensual sobre Carla del Ponte é que a procuradora é persistente. Muito persistente. Uma qualidade que lhe tem valido epítetos como "Bulldozer". Ou "Bulldog". Ou "a nova Gestapo" (imprensa sérvia). Houve quem lhe chamasse "míssil desgovernado" (um banqueiro suíço, na sequência do ataque da magistrada ao segredo bancário do seu país, que acusou de proteger o crime organizado). Na época onde os seus trajectos se cruzavam com mais frequência, a Máfia siciliana chamava-lhe simplesmente "La Puttana". Os inimigos que coleccionou (e que ostenta como condecorações) e o seu compromisso com a justiça, a par de uma coragem de que dá exemplos quotidianos, seriam suficientes para criar à sua volta uma aura com o seu quê de lendário. Carla - o nome do documentário autoriza-nos a tratá-la assim - é uma filha espiritual do famoso juiz italiano anti-Máfia Giovanni Falcone, assassinado num atentado em 1992, com quem trabalhou em casos de lavagem de dinheiro. Falcone dedicava-se ao combate contra a Máfia e Carla del Ponte era então procuradora da federação helvética - é suíça e não italiana, ainda que não a incomode a confusão, como boa filha de Lugano.
Carla del Ponte, hoje com 60 anos, começou a sua carreira como advogada, mas ao fim de seis anos passou para a procuradoria, tendo sido nomeada procuradora-geral da Confederação Helvética em 1994. A nomeação pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para o cargo de procuradora do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, em 1999, veio apenas depois de uma extensa experiência de investigação do crime organizado internacional, marcado entre muitos outros incidentes por um atentado à bomba na sua casa de Palermo, em 1989 (a bomba foi descoberta nas fundações da casa e não chegou a explodir), e um ataque ao helicóptero onde viajava, em 1996, durante uma investigação do tráfico de cocaína na Colômbia. Depois disso o seu carro foi ainda alvejado em Belgrado e é tudo no domínio dos atentados contra a sua vida. Se excluirmos as ameaças, que continuam mas já entraram no quotidiano. A presença dos guarda-costas, aliás, como o documentário mostra, é constante. Se Carla é tenaz como um cão de fila, e se a sua carreira no Tribunal Penal Internacional lhe granjeou a admiração de muitos (e a inimizade de outros), é evidente a sua insatisfação. Por causa de Mladic e Karadzic, evidentemente, mas também do Presidente jugoslavo Slobodan Milosevic, que conseguiu sentar no banco dos réus da Haia mas que um ataque cardíaco mortal roubou à condenação. Carla del Ponte fala da frustração das vítimas, de quem se sente a voz e o braço armado. As vítimas ocupam o lugar central no espírito desta jurista, que declarava, numa entrevista ao Libération, que são as entrevistas com elas que "dão a medida do sofrimento sentido e a emoção que alimenta o inquérito".
Apesar de tudo, Milosevic é um marco na história da justiça: foi o primeiro chefe de Estado da História julgado pela justiça internacional por crimes contra a Humanidade e Carla del Ponte estava na cadeira da acusação. Em Setembro próximo, Carla del Ponte abandonará o tribunal (já disse que não aceitaria nova recondução) para voltar à vida civil, mas é difícil imaginar o que fará depois esta fumadora empedernida, que os jornais suíços dizem ser a suíça mais conhecida do mundo depois de Heidi e para quem a caça de criminosos se tornou uma segunda natureza.

Sem comentários: