terça-feira, outubro 25, 2005

Fora da política

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 25 de Outubro de 2005
Crónica 31/2005

Cavaco nem pede que o sigam a lado nenhum, pede apenas que lhe passem uma procuração.


Na apresentação da sua candidatura à Presidência da República, Cavaco Silva voltou a sublinhar um aspecto que sempre constituiu um ponto forte da sua imagem e que já se percebeu que vai estar, mais uma vez, no cerne da sua campanha: o seu estatuto de não-político, de alguém que não vive da política e que possui uma competência “real”, que se encontra para além das ilusões retóricas da política.

Trata-se de um caso exemplar da perspectiva tecnocrática, que considera que existem soluções técnicas óptimas para os problemas sociais e que a sua resolução depende, apenas, de reunir as competências necessárias.

A ideologia e a política são para os tecnocratas, no melhor dos casos, um manto anódino de fantasia que se lança sobre o mundo real sem lhe alterar a substância e, no pior caso, uma arte do embuste. A tecnocracia vê as ideologias como possibilidades “estilísticas” da política, mas considera que os problemas reais apenas são abordáveis e resolúveis por quem detenha as competências técnicas adequadas.

Cavaco apresenta-se como o homem que detém essas competências e espera convencer os eleitores de que se encontra para além da retórica, no mundo da acção e não da palavra, que não perde tempo a discutir quando pode resolver e que a sua competência pode transformar, enquanto a política dos outros apenas consegue maquilhar.

Esta mensagem é tanto mais atraente quanto maior for a realidade e a percepção da crise social – não é por acaso que a época de ouro da tecnocracia foi a Grande Depressão americana –, mas radica numa falácia.

Se houvesse uma solução técnica óptima para os problemas sociais ela já teria sido encontrada – ou sentiríamos pelo menos que estamos cada vez mais próximos de a encontrar. Na realidade, e ao invés de existir um solução técnica universal mágica para o desemprego ou para a segurança social, a procura de soluções (numa sociedade democrática) passa pelo confronto pacífico dos vários interesses, pelo debate e pela negociação. A democracia tenta produzir consensos sociais negociados e implica escolhas – é uma questão de eleições, em mais do que um sentido. E essas escolhas mudam com o tempo, estão sujeitas a humores e ilusões, manipulações e chantagens, sonhos e receios. E dependem até (isso sim) do leque de possibilidades técnicas que é posto à disposição dos cidadãos.

Isto não significa que a política não exija líderes com competência e determinação – significa apenas que isso não chega. Exige também cidadãos. E as competências que os líderes devem possuir não se situam fora da política – são, essencialmente, competências políticas, que permitem que um dirigente equacione escolhas, faça propostas à sociedade e mostre capacidade de liderança para as transformar em realidade. São qualidades nobres e necessárias.

Uma das contradições na candidatura de Cavaco é que ele adopta a pose tecnocrática de ministro, enquanto se candidata ao menos técnico e ao mais político dos cargos públicos. Se o Primeiro-ministro pode pôr em prática uma política, o Presidente da República não pode. Pode apenas discursar, lançar debates, promover iniciativas, intermediar e arbitrar.

Cavaco apresenta-se não apenas como um profissional competente mas sublinha que é alguém cuja competência se encontra “fora da política” – como se a política fosse coisa nenhuma ou apenas a arte da indecisão, da ignorância ou do acaso (senão da venalidade). A mensagem é subliminal, mas está lá. E esta ideia de política é errada e é perigosa. Era-o quando Cavaco era primeiro-ministro e é-o hoje. Não é perigosa porque Cavaco seja um ditador em potência: é perigosa porque não contribui para melhorar a política e a democracia, porque apela à menoridade dos portugueses ao prometer-lhes uma tutela em vez de lhes exigir cidadania e participação, é perigosa porque não exige esforço nem qualidade mas pede apenas a mais passiva das fés. Cavaco nem pede que o sigam a lado nenhum, pede apenas que lhe passem uma procuração.

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