por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Setembro de 2005
Crónica 25/2005
A liberdade de expressão e de manifestação constitui uma garantia da utilização de meios legítimos.
A ideia segundo a qual os militares podem participar em manifestações convocadas por outrem mas não podem eles próprios convocar manifestações é um convite à hipocrisia e um estímulo ao contorno das leis. De acordo com este princípio, se o sobrinho de um sargento decidir convocar uma manifestação em prol da defesa nacional o seu tio poderá participar (e os seus camaradas de armas), mas este não a pode convocar ele próprio sob pena de medidas disciplinares. Este incentivo à criação de testas de ferro não pode ser seriamente considerado uma medida de reforço da estabilidade política, da paz social ou da segurança do Estado.
A restrição do direito de manifestação dos militares tem razões históricas compreensíveis. “A tropa nas ruas” evoca golpes de Estado e ditaduras. No entanto, a democracia é o regime do confronto pacífico, aberto e regulado pela lei das ideias e interesses dos vários actores sociais, e não é possível, numa sociedade aberta e democrática, reprimir a expressão de interesses legítimos sem pôr em causa os princípios em que assenta essa democracia. Proibir manifestações de militares em tempo de guerra é evidentemente necessário, mas não se vê a bondade de o fazer em circunstâncias de paz.
A Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas consigna o direito de manifestação dos militares, “desde que estejam desarmados e trajem civilmente sem ostentação de qualquer símbolo nacional ou das Forças Armadas”, mas acrescenta que os militares apenas podem participar numa manifestação se esta não tiver “natureza político-partidária ou sindical [e] desde que não sejam postas em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas”.
A última condição é a porta aberta para uma proibição de facto, já que depende da avaliação feita em cada momento pelas chefias militares e pelo poder político. Mas, aparentemente, a lei autorizaria os militares portugueses a participar numa manifestação que exigisse a demissão do Governo desde que não a convocassem nem eles próprios nem um partido político (serviria qualquer outra entidade?) e desde que se abstivessem de exigir aumento de salário.
Por razões evidentes, os militares estão impedidos de enveredar por certas formas de luta contra o patrão Estado mesmo quando envolvidos em disputas laborais (para além de todos os outros laços que existam entre um soldado e o Estado, existem também laços laborais). Mas não parece haver razão para proibir a manifestação dos seus desejos e reivindicações (independentemente da apreciação que se faça das suas razões). Mais: a liberdade de expressão e de manifestação constitui uma garantia da utilização de meios legítimos de contestação (teria havido 25 de Abril se os militares tivessem podido manifestar-se livremente?).
É necessário que o Estado confie suficientemente na maturidade democrática das Forças Armadas para saber que não será um conflito laboral – mesmo com manifestações – que irá desviar as Forças Armadas da sua missão constitucional. Isto da mesma maneira que outros conflitos laborais com o Estado-patrão, não fazem com que os médicos comecem a matar doentes ou os juízes a condenar inocentes. Se o Estado não tiver essa confiança, temos mais razões para ficar preocupados do que pensamos.
Posto isto, é igualmente claro que o extremo dever de obediência dos militares não é compatível com a desobediência a uma ordem directa, quando ela existe.
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