por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Setembro de 2005
Crónica 26/2005
O que esperamos de um “watchdog” é que não perca tempo em rodriguinhos diplomáticos, que possa seguir a direito.
Segundo a Constituição, cabe ao Tribunal de Contas a fiscalização das despesas públicas. Este órgão deve verificar se os dinheiros do erário público foram gastos onde deveriam ter sido gastos e se isso aconteceu acautelando o interesse público, de acordo com princípios de legalidade, prudência, eficiência, equidade e transparência.
O Tribunal de Contas pertence pois àquilo que os anglo-saxónicos chamam o sistema de “checks and balances” – uma expressão que inicialmente se referia apenas à clássica divisão dos três poderes de Montesquieu, mas que nas sociedades democráticas de hoje encontra tradução numa constelação de novos poderes e instituições.
Há quem traduza a expressão “checks and balances” como “pesos e contrapesos”, mas a mais literal “controlos e equilíbrios” parece mais adequada, já que não se trata apenas de encontrar equilíbrios entre os vários poderes para evitar um abuso de qualquer deles (o que “pesos e contrapesos” sugeriria) mas também de instituir sistemas de controlo e fiscalização, que garantam a correcção e adequação dos actos cometidos pelos organismos detentores do poder para a prossecução dos fins anunciados.
Os americanos, com a vivacidade de língua que se lhes reconhece, inventaram a expressão “watchdog” – cão de guarda – para estes organismos.
A atitude que os cidadãos têm o direito de exigir a um destes “watchdogs” é uma de feroz independência perante os poderes que têm de fiscalizar e de feroz defesa do interesse público. Exige-se de um poder fiscalizador que seja inquiridor (não inquisidor), disciplinado, insistente, que não aceite nada “a priori”, que passe a pente fino o que investiga. Exige-se-lhe, enfim, que desconfie. A única lealdade que um “watchdog” deve conhecer deve ser perante o colectivo dos seus concidadãos e não perante qualquer dos seus subconjuntos.
Poder-se-ia pensar que um juiz do Tribunal de Contas e um deputado têm no fundo papéis semelhantes, já que ambos devem fiscalizar as acções do executivo. Pode-se pensar... mas não é assim. E não é assim porque um deputado se sente preso, a par de muitas outras obrigações, por um dever de lealdade para com os seus companheiros de bancada – e, no caso de se tratar de um deputado da maioria que apoia o Governo, também por um dever de lealdade para com o Governo. É discutível, mas é um facto. É evidente que este sentimento não se pode sobrepor às suas obrigações para com os eleitores, os cidadãos em geral e a democracia, mas essa lealdade levá-lo-á a tender a confiar nos seus companheiros (e no Governo) enquanto o que se espera de um “watchdog” é que desconfie. São papéis diferentes e incompatíveis. Pode-se defender que não há nas duas funções conflito de interesses, mas há seguramente conflito de lealdades. É possível que alguém dotado de uma capacidade de navegação excepcional possa levar a cabo as duas tarefas sem se incompatibilizar com demasiadas pessoas, mas o que esperamos de um “watchdog” é que não perca tempo em rodriguinhos diplomáticos, que possa seguir a direito sem ter de se certificar constantemente de que não está a pisar o pé do vizinho.
Nalguns jornais existe uma função de “watchdog”: o provedor do leitor. É quase sempre um antigo jornalista, muitas vezes um antigo jornalista da casa mas é sempre alguém que suspende a função de jornalista (e que, frequentemente, nem sequer a retoma). Não há nada de incompatível em ser jornalista e defender os direitos do leitor (pelo contrário, todos os jornalistas sabem que são os leitores os primeiros credores da sua lealdade), mas há sempre um momento em que, perante um conflito, é necessário escolher um dos lados, e a escolha do campo dos leitores pelo provedor, por justa que seja, pode ser vista como uma quebra de lealdade entre jornalistas. Há ódios persistentes que nascem assim. Pretender manter um jornalista em funções numa redacção ao mesmo tempo que se lhe entregasse o cargo de provedor daria origem a uma gargalhada tão sincera como as que nos suscita Arlequim quando tenta servir dois senhores.
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