por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Setembro de 2005
Crónica 24/2005
O que aconteceria à América se, por um dia, os seus guardas e militares desaparecessem das ruas?
1. Não é preciso ser um religioso fundamentalista nem sequer ver no furacão Katrina a mão de Deus para constatar que ele constituiu para os Estados Unidos uma lição de humildade.
Uma lição de humildade perante a força dos elementos, que tornam evidente que mesmo para a nação mais poderosa da terra não é sensato prescindir da ajuda internacional, mas também uma lição de humildade perante as violentas lacunas da organização social americana e perante a miséria preexistente que o desastre tornou dolorosamente visível.
Nos últimos dias, o mito nacionalista americano e o seu culto da competição, da força e da violência sofreu um banho de realidade e ouvimos multiplicar-se os apelos à entreajuda, à dádiva e à cooperação. Será sol de pouca dura, mas pode ser que as necessidades pungentes que o Katrina revelou ou originou deixem ficar algo destes apelos nos corações e nas mentes dos americanos.
2. Se as imagens que as televisões nos mostram lembram as de um país do terceiro mundo afectado por uma catástrofe natural é porque nos Estados Unidos existe um enorme país do terceiro mundo acocorado em torno das suas ilhas de sucesso.
Os EUA gostam de medir o vigor da sua sociedade pelos seus sucessos – incontestavelmente imensos. Mas se o critério incorporar alguma noção de justiça, a qualidade de uma sociedade tem de se medir pela extensão da sua pobreza e da sua violência tanto ou mais do que pelos êxitos científicos ou pela sofisticação das suas classes abastadas.
Para quem persiste em ver na América um modelo social justo e eficaz que merece ser exportado para os quatro cantos do globo, é educativo relembrar que em torno dos sonhos americanos encarnados pelos Bill Gates e Oprah Winfreys vivem milhões de pobres, excluídos e esquecidos, mantidos às portas da cidade pelas forças policiais. É verdade que também há excluídos em Portugal, mas pelo menos ninguém defende o “modelo português” para os males do mundo.
As pilhagens a que tantos se lançaram na Louisiana logo após a catástrofe mostram essa insuportável tensão entre ricos e pobres, que faz da América um barril de pólvora que qualquer pretexto pode fazer explodir. Em que país do mundo civilizado uma catástrofe dá origem a pilhagens de supermercados e armeiros?
O que aconteceria à América se, por um dia, os seus guardas e militares desaparecessem das ruas? A cadeia de solidariedade entre homens livres que é o sangue da democracia faria ouvir a sua voz ou a América tornar-se-ia de um momento para o outro uma terra de senhores da guerra, de pilhagens e motins, como vemos nos piores países do terceiro mundo?
3. O atraso na reacção de Bush, a paralisia da Federal Emergency Management Agency (FEMA), a incapacidade da Guarda Nacional, a desagregação das forças policiais, a lentidão dos socorros, a degradação dos centros de acolhimento de emergência (e a sua própria falta de segurança, com registo de homicídios e violações), a segregação racial evidente, a falta de conservação das obras públicas que podiam ter evitado o desastre são temas que irão continuar a fazer correr tinta nos próximos dias.
Mas, para além dos problemas, é importante ver a atitude que foi adoptada para os resolver: a entrega da sua resolução aos militares.
A militarização dos Estados Unidos e da sua política, a nível interno e externo, é um facto, triste e preocupante. É um sinal dessa militarização que não só a reposição da ordem nas ruas de Nova Orleães mas também a organização dos socorros e das obras de emergência tenha sido entregue não a agências civis como a FEMA mas principalmente aos militares. Os americanos têm uma dificuldade crescente em encontrar projectos comuns e heróis que não sejam do foro militar. Um tique pouco auspicioso.
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