por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Julho de 2012
Crónica 26/2012
Texto publicado no jornal Público a 3 de Julho de 2012
Crónica 26/2012
Uma fila de supermercado é uma colecção de histórias e há umas que parecem mais prometedoras do que outras
Escolho a fila do supermercado de acordo com os critérios consabidos. A mais curta, mas não apenas a mais curta em pessoas. Depende da quantidade de compras que as pessoas tenham nos cestos e nos carrinhos. É preciso escolher a fila com menor número de compras. Mas não apenas em número absoluto, porque o dono do restaurante com o carrinho cheio de caixas de minis pode despachar-se rapidamente (“São 32 embalagens de dez”.) A variedade das compras também conta. E a determinação dos compradores - um factor muitas vezes ignorado. Há quem esteja na bicha com o firme propósito de se despachar rapidamente e sair dali para fora. E há quem esteja na bicha mas olhe ainda em volta, para trás, consulte a lista de compras, passeie os olhos pelas prateleiras com saudades. São os shopping lovers. São os que nos podem dizer com um sorriso, depois de ter despejado o carrinho no tapete rolante mesmo à nossa frente “Importa-se só queu vá ali buscar uma coisa no estantinho?” A palavra balbuciar foi inventada para estas circunstâncias. Balbuciamos qualquer coisa ininteligível que nós próprios não sabemos o que é. Talvez seja “Claro que não me importo, faça favor. Não tenho pressa nenhuma.” ou “Mas por que raio é que não se lembrou disso antes de se vir pôr na bicha?” mas que soa como “hahhm..” E, claro, fugir das famílias. As famílias podem ser perigosas e é preciso detectá-las. São como as passagens de nível onde um comboio pode sempre esconder outro. Aquela mulher só com um shampoo na mão e um ar alucinado pode no último minuto ser abalroada pelo resto da família com dois carrinhos cheios. É preciso intuição. Não vale a pena dizer nada. A mulher do shampoo estava a “guardar o lugar”. Nem é pelos dois carrinhos de compras. É pelo potencial de altercação familiar. Tudo o que se comprou, o que alguém se esqueceu de comprar e o que alguém não comprou na semana passada quando estava mais barato pode ser o enredo de um choque conjugal surdo. As crianças também. Pode ser quotidiano a mais para uma ida ao supermercado. Tenho nos meus cadernos notas para vários romances que foram conseguidas só a ouvir as famílias à minha frente na fila do supermercado. Ah, e claro, é preciso ver se não existe já um incidente em curso na caixa. Se a senhora da caixa parece descontraída e olha para as unhas e o cliente à sua frente olha para o ar, é porque estão à espera da supervisora para ela enfiar uma chave e teclar um código na caixa registadora e anular uma operação com os gestos treinados de um instrutor dos Comandos que mostra como se monta e desmonta uma AK47. É melhor escolher uma caixa onde a “caixa” pareça desvairada, passando mecanicamente pacotes pelo laser vermelho ting! e pesando fruta num ápice ting! e alisando códigos de barra com a unha ting! enquanto mete tudo em sacos, faz trocos, dobra talões, entrega cartões e passa recibos. Se a “caixa” tiver uma cara inexpressiva e o olhar no vácuo é provável que esteja numa boa bicha.
E depois há o gosto pessoal, claro. Um carrinho de supermercado é um livro aberto, uma janela escancarada sobre a vida alheia à frente dos nossos olhos, um convite ao voyeurismo, como uma corda com roupa a secar ou o livro que a pessoa lê à nossa frente no metro. Sei como é o olhar de condenação dos outros quando se tem no carrinho vinte garrafas de vinho e um litro de leite. Ou o olhar crítico que as mães responsáveis nos lançam quando só temos hamburguers, pacotes de batatas fritas, bolachas de chocolate e pastilhas elásticas (neste caso aconselho atirar para o carrinho um saco de maças Granny Smith para suavizar a imagem).
Uma fila de supermercado é uma colecção de histórias e há umas que parecem mais prometedoras do que outras. Mas nem todas são agradáveis. Nos últimos meses as filas de supermercado contam histórias tristes.
A fila que escolhi hoje é pequena. À minha frente está uma mulher de uns trinta ou quarenta anos, elegante, com um olhar vivaz e um sorriso inteligente (não, não é um critério, mas pode acontecer, pronto) que leva meia dúzia de compras na mão (critério). Está vestida com um tailleur saia-e-casaco e sapatos pretos de salto, formais, certamente por necessidade profissional. Pousa as compras no tapete e murmura qualquer coisa à empregada. Percebo que lhe pede para ir fazendo subtotais, à medida que vai registando as compras. Há vários iogurtes mas estão separados, em vez de estarem num conjunto de quatro, como na prateleira. A caixa passa várias compras e quando o subtotal atinge 3 euros e 73 cêntimos a cliente diz “está bem assim”. No tapete fica um iogurte natural e um pacote de bolachas da marca do supermercado que a caixa põe de lado num gesto rápido, numa pilha heteróclita onde há outros restos de compras. A mulher elegante paga os 3,73 euros com Multibanco.
Esta história é sobre uma mulher elegante de trinta ou quarenta anos, com um sorriso inteligente, que trabalha num sítio onde lhe exigem que se vista com alguma formalidade e que só tem quatro euros no banco. (jvmalheiros@gmail.com)
3 comentários:
Vi na sua descrição um realismo absoluto, por momentos revivi as experiências que descreveu.
Penso que no ultimo paragrafo fala da desumanização e da forma subtil como esta é revelada, por muito que nos custe continuamos a viver numa sociedade onde a perspectiva com que se olha alguém é confundida com a pessoa em si, um erro que tem tão de frequente como de inaceitável.
Boa tarde,
Quantas e quantas pessoas têm só para gastar esses 4 euros em supermercado que parecem e são tão pouco mas tanto para quem os paga. Enfim...
Bom observador. Está fantástico. Confesso que ultimamente ocorre com alguma frequência por e simplesmente desistir de estar na fila. Tenho poupado dinheiro curiosamente. Os "senhores" das
"caixas" são cada vez menos. E as filas cada vez maiores.
Enviar um comentário