por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Abril de 2012
Crónica 14/2012Estado quer detectar sinais exteriores de riqueza. Operação vai centrar-se nos beneficiários do RSI.
O Governo anunciou que vai começar a fazer um esforço sistemático e rigoroso de detecção de todas as manifestações de sinais exteriores de riqueza e vai verificar se essas pessoas não terão feito declarações fraudulentas ao Estado e se não estarão a beneficiar de situações de privilégio injustificado.
Parece uma medida corajosa e justa não parece? Parece, mas seria bom de mais. O Governo anunciou realmente essa preocupação e diz-se determinado a agir, só que essa preocupação não se destina a combater a fraude fiscal, nem a apanhar e punir aqueles empresários, gestores e profissionais liberais com grandes rendimentos que pouco ou nada pagam aos fisco, nem tão pouco a identificar casos de corrupção, mas a identificar os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) que não cumprem as regras.
Não se trata de uma piada de 1º de Abril. O ministro da Solidariedade e Segurança Social, Pedro Mota Soares, já há tempo que vem falando nisto, sempre com o ar de cruzado fervoroso que o caracteriza.
Na linha do que o CDS sempre pensou e sempre disse - estas posições têm-se pautado pela coerência, ainda que coerência seja o tipo de qualidade que também se pode imputar a um serial killer - Pedro Mota Soares acha que há muita fraude no RSI, aquele subsídio que Paulo Portas considera um "financiamento à preguiça" e que antes considerava o “subsídio dos ciganos”. Mais: Pedro Mota Soares sabe que a fraude no RSI totaliza 70 milhões de euros, mais coisa menos coisa. Sabe que a fraude que há no RSI tem o mesmo valor de que precisou para os aumentos das pensões mínimas, rurais e sociais que entraram em vigor no início do ano. É por isso que o gasto total no RSI deste ano vai passar de 440 milhões de euros para 370 milhões. Foi assim que a pensão mínima passou para 254 euros, a rural para 234 euros e a social para 195 euros. Um aumento de sete euros, “em linha com a inflação”, não vão estes pobres ganhar vícios e começar também eles a mostrar sinais exteriores de riqueza.
Mas esse aumento foi feito graças à fraude no RSI, que constitui uma preocupação central de Pedro Mota Soares. Foi apenas graças à certeza de que podia roubar aos pobres para dar aos pobres que Pedro Mota Soares pôde oferecer este bodo aos pensionistas que, segundo o ministro, “não é uma medida simbólica”.
Só que o ministro não acha que os recipientes do RSI sejam pobres. Numa entrevista dada em Janeiro ao Correio da Manhã o ministro revelava que havia beneficiários do RSI com 100.000 euros no banco mas que recebiam o subsídio.
Pedro Mota Soares apresenta estes casos como se fossem representativos do grupo de beneficiários do RSI, para reforçar a tese do "financiamento à preguiça" e ganhar apoios entre os pensionistas pobres, que lhe agradecem os sete euros suplementares que lhes caem no boné à custa dos falsos pobres com milhares no banco. Os pobres podem assim entreter-se a odiar os mais pobres.
Podemos ter a certeza de uma coisa: as fiscalizações vão de facto encontrar “fraudes” que vão somar 70 milhões. E vão encontrá-las porque tem sido essa a ordem que o ministro tem dado à inspecção, com insistência e publicamente. Os senhores inspectores não têm interesse nenhum em não chegar aos 70 milhões. Não interessa se o RSI é a mais fiscalizada das prestações sociais, não interessa se em 2008 o valor das irregularidades detectadas foi de 11,2 milhões de euros, não interessa se o anterior Governo tinha encontrado 20 por cento de irregularidades em acções de inspecção feitas apenas no sub-conjunto de casos que apresentavam características suspeitas. Este Governo vai encontrar 16 por cento de “fraude” no universo total de beneficiários porque o ministro definiu essa meta e até já gastou o dinheiro. E todos sabemos que encontrar irregularidades é a coisa mais fácil do mundo. Se não se encontrasse a “fraude” onde é que se iriam buscar os sete euros do aumento das pensões? A pessoas sérias, votantes na maioria, bons católicos, com empresas em off-shores e unhas irrepreensíveis?
E não interessa se a maioria das irregularidades são apenas pequenas alterações dos rendimentos ou do número de pessoas do agregado familiar que fazem com que uma família deixe de se encaixar no critério do RSI. Pedro Mota Soares diz “fraude”, quer que se diga “fraude”, quer que se fale das “fraudes”. Quer que se imagine ricaços com 100.000 euros no banco e carros de luxo à porta a receber o RSI. Não terá vergonha? Compaixão? Tem. Mas Pedro Mota Soares sabe que o Céu espera quem sofre. Se muito sofrerem, os beneficiários do RSI ficarão mais perto da Glória e esse pensamento é exaltante. Talvez alguns sejam afastados injustamente e acabem por morrer por falta de dinheiro para uma taxa moderadora, mas não sofreu Cristo? Como é bom ter uma fé que nos permite oferecer o Paraíso a tantos, dando-lhes a oportunidade de oferecer a Deus o seu sofrimento. Com anjos da guarda assim, quem precisa de demónios? (jvmalheiros@gmail.com)
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