terça-feira, abril 10, 2012

Recordes e mentiras

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Abril de 2012
Crónica 15/2012


Num mundo de mentiras tão repetidas que parecem verdades, é preciso, pelo menos, denunciar uma de cada vez.

Número de desempregados bate recordes. Número de desempregados jovens bate recordes. Número de falências bate recordes. O número de estudantes sem bolsas e a fuga de cérebros batem recordes. A emigração e o regresso de imigrantes aos seus países de origem batem recordes. O número de sem-abrigo e o número de pessoas que pedem ajuda alimentar batem recordes. O número de famílias que não conseguem pagar as suas hipotecas aos bancos e que não conseguem pagar escolas privadas bate recordes. O número de suicídios bate recordes. O aumento das taxas moderadoras e os cortes nos subsídios de desemprego e no rendimento social de inserção batem recordes. Os cortes na participação nos medicamentos batem recordes. O número de desempregados sem direito a subsídio e o número de doentes com cancro que abandonam tratamentos por falta de dinheiro batem recordes.

Estes são alguns dos recordes que o país bateu nos últimos dias. Apenas nos últimos dias e fazendo uma pesquisa superficial na imprensa. Não são todos. São apenas alguns dos que são mais fáceis de medir. Entre os outros recordes, mais subjectivos, que estão a ser batidos de dia para dia, está a perda de confiança dos portugueses no Governo, nos políticos em geral, na política e até na democracia. A perda de confiança nas instituições em geral, da Justiça às instituições europeias, da imprensa às escolas. A perda de confiança nos outros e em si mesmos.

Batemos todos os dias recordes de culpa, de medo e vergonha. Sentimentos de culpa inculcados por responsáveis sem vergonha, que continuam a repetir a ladainha de que “os portugueses viveram acima das suas possibilidades” e de que somos os culpados de todos os males que nos afligem. Medo de perder o emprego, de não ter dinheiro para pagar a hipoteca, o infantário, a electricidade, o gás, a água. Medo de ficar doente e de passar a receber metade do ordenado, sem poder ir ao médico nem comprar medicamentos. Medo de engravidar e de que o contrato não seja renovado. Medo de condenar a família à miséria. De viver à custa dos pais. De viver à custa dos filhos. De acabar a viver na rua. De repente, como acontecia nos filmes dos anos 50, uma tosse pode ser o sinal da catástrofe que se abate sobre uma família. É proibido adoecer.

Vergonha de não ter dinheiro para ir ao café com os colegas, de ter o gás cortado por falta de pagamento, de ter a mensalidade do condomínio atrasada, de não poder comprar ao filho o brinquedo que ele diz que as outras crianças todas têm, de não poder comprar o casaco nos saldos, de não poder ir ao cabeleireiro. Vergonha de deixarmos este país e esta Europa e este mundo aos nossos filhos.

Batemos recordes de humilhação. Desconsiderações que se engolem no emprego, remoques que se suportam dos chefes, horas de trabalho não remuneradas roubadas à família, ao descanso, à saúde, submissão aos capatazes que murmuram ameaças veladas. Represálias que se sofrem em silêncio devido a críticas, a reivindicações, a solidariedades, a posições políticas que se tomam e que se começam a lamentar.

Batemos recordes de desespero e de indignação mas a indignação é cada vez mais fruste e o desespero mais individual. Deixámo-nos levar pela vaga de individualismo consumista e estúpido para nos descobrirmos sozinhos na fila do centro de desemprego.

Admiramo-nos de que não haja mais indignação, mais revolta, espantamo-nos com a apatia que vemos nas ruas, escrevemos desabafos no Facebook, assinamos abaixo-assinados e participamos em manifestações e greves mas sentimos que estamos também a bater recordes de resignação, de desistência e de tristeza. Há uma mulher no autocarro ao meu lado que diz que “vivemos acima das nossas possibilidades”. Há um velho que acrescenta que “os pobres sempre foram pobres e sempre hão-de ser”. Quando digo que não tem de ser assim olham-me como se fosse um louco. Um agitador.

Como é possível que tantos continuem a acreditar nas mentiras de tão poucos, que tantos continuem dispostos a vender os seus primogénitos para enriquecer os mais ricos dos ricos? Como é possível prescindir do futuro, da liberdade, da democracia, como temos andado a fazer? Apetece-nos emigrar para o Brasil, para a Tunísia, para algum sítio onde ainda pareça possível melhorar alguma coisa, mas a peçonha invadiu o mundo. Nos EUA, na Irlanda ou em Portugal repete-se que o Serviço Nacional de Saúde não é sustentável, que só há dinheiro para tratar os ricos, que não sobra nada para os pobres.

Como se pode viver? Num mundo de mentiras tão repetidas que parecem verdades, é preciso, pelo menos, denunciar uma de cada vez, para não perder o norte por completo. Por exemplo: é mentira que a inscrição na Constituição de um limite ao défice seja uma “regra de ouro”. Essa é uma expressão de propaganda, manipuladora. É uma mentira disfarçada de aforismo sábio. Uma mentira insidiosa. Os jornalistas, ingénuos, repetem-na, seduzidos pela sua concisão. Mas não devem. (jvmalheiros@gmail.com)

13 comentários:

Anónimo disse...

Não me parece um acaso a aceitação da imoralidade, estamos habituados a isso, o sistema capitalista é visto como a mão de Deus e enquanto assim for é difícil pensar em algo verdadeiramente decente.

num mundo de men tiras ou não? disse...

mais 5 ou 6 tanto fax:

Número de desempregados bate recordes....dantes o sub-emprego e o biscate não contava prós indíces adevias ter visto o deserto em 81...


Número de desempregados jovens bate recordes...sim dantes iam prá estrada de azeitão ...onde uma foi baleada aos 16 anos por um desempregado sem cheta por 15 contos
(a maioria levava só uns sopapos)
e o rossio se enchia de putos dos 9 aos 16 para venda até 1998




Número de falências bate recordes...jura olha se bem me lembro em 83-85 houve mais em termos percentuais
(taberna e mercearia nã entrava então no rol das empresas)


O número de estudantes sem bolsas
(mas com dinheiro para ir a loret do mar ou a encher a 24 de julho e arredores é maior do que nos 91 cavaquistas

e a fuga de cérebros (nem por isso morreram só 2500 e acho que nem lhes tiraram a mioleira)batem recordes.

A emigração (olhe que não em 2008 já saiam bué deles e em 92 e em 95 e em 2002 agora repara-se mais nisso e con tabiliza-se mais isso)

e o regresso de imigrantes aos seus países de origem lamentamos mas as gaijas das mães de braganza
nã voltaram para o brasil que havia con corrência


batem recordes....na suiça suécia
onde a concorrença com as ucranianas e as máfias romenas e turcas já era grande


O número de sem-abrigo tem andado alto desde que a metadona (via centro de trata mento's)e as meta-anfetaminas substituiram a coca e o cavalo do casal ventoso

e o número de pessoas que pedem ajuda alimentar batem recordes....olha que desde 1975-2005 o nº de gente a pedir porta a porta tem diminuido brutalmente



O número de famílias que não conseguem pagar as suas hipotecas aos bancos e que não conseguem pagar escolas privadas ...apesar destas estarem muito mais baratuchas
algumas só custam 200 aeurrios ao mês
uma reforma de pescador ou de empregada em fábrica de conservas


O número de suicídios bate recordes....1101 é recorde?

atão e os 300 não declarados só no distrito de évora nos anos de 85-86 o anos em que o João Aniceto andava a matar hemodialisados com o sulfato de alumínio que o presidente monhé da câmara de évora punha na iágua à sacada grande porque a câmara tinha dinheirama pra gastar

e chegavam 2 por dia com paraquato ou paratião na barriga ou as fuças desfeitas num acidente de caça solitÁRIO

isso da memória estatística é diferencial né?

Banda in barbar disse...

O camarada tem perfeita razão é um recorde em razões.
Ou rações.

chinfrim disse...

Obrigada por mais um texto tocante e por nos ajudar a ver a Verdade. Vivam os loucos e os agitadores!

Marco Trigo disse...

Porque no fundo, não é o nosso problema sermos pobres, mas sermos mesquinhos. Porque num orçamento de 23 mil milhões para a segurança social, 370 milhões vão para o RSI. Ainda assim, aplaudimos durante toda a semana a demagogia de colocar a trabalhar os beneficiários de 1,6% do orçamento, na mesma semana em que pelas costas nos retiram as reformas antecipadas.

E os tantos colhem as mentiras de tão poucos, porque hoje os empregados culpam os desempregados pela sua miséria, pelos seus impostos. Amanhã desempregados, culparão os outros desempregados, porque neste país tudo se faz e sempre se fará, porquanto conseguirmos vender a uns, a história de que a culpa é dos outros.

Judite Pato disse...

Até quando seremos os tristes resignados da revolta de não sermos nada e caminharmos para lado nenhum?

Judith Pato

Judite Pato disse...
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Anónimo disse...

Desculpe-me que o corrija mas o sistema capitalista não é divino mas sim natural. Porque foi naturalmente concebido, é da sua natureza que seja controlado por apenas alguns seres humanos.

Anónimo disse...

Obrigada pelo texto. Há semanas que ando a tentar explicar isto aos meus amigos, quando tento justificar a minha intenção de emigrar, mesmo tendo um emprego aparentemente seguro, mesmo ganhando muito acima da média (portuguesa, note-se) e sem uma licenciatura. Aquilo que tenho à minha frente são pessoas com medo a caminho do servilismo, pessoas esclarecidas mas completamente tolhidas pelo medo e incapazes de atingir a dimensão disto tudo. Especialmente a dimensão da mentira. E quando me dizem que corro o risco de estar a ser pobre e mal agradecida, que eu entendo como uma incapacidade minha de agradecer todos os dias o privilégio de ter um patrão, eu tenho respondido, em vão, que os pobres não são obrigatoriamente estúpidos.

Permita-me por favor um aparte ao comentário do anónimo de 11 Abril, 2012 16:17. Caro anónimo essa sua definição é tão chocante quanto perigosa. Tenho confiança que os reaccionários não vingarão, sabe porquê? É que já haverão por aí seres iluminados, os tais habilitados, provavelmente e naturalmente, a liderar ideais capitalistas, a passar fome. Oxalá.

LUIS SANTOS disse...

Sem dúvida que se tem que combater estes recordes que eu classifico como nojentos e não lhe chamo recordes mas sim pobreza real e demasiadamente maus para um povo que por variadissimas vezes conduziu a que isto se permita e continua a permitir.Sem dúvida que todos temos a nossa parte de culpa ,mas e pelos vistos ainda não atingimos a maturidade para expulsar esta canalhada que nos anda consecutivamente a chupar o nosso esforço de erguer a nossa identidade e pátria, se é que ela existe ,pois começo a ter sérias dúvidas continuamos mais uma vez a admitir tudo até putos que nunca fizeram nada na p .da vida.. já os elegemos para primeiros ministros e etc... tenham paciência estavam á espera do quê ? sinceramente tirem esta gente dos lugares de administração e coloquem gente do campo que ao menos sabem o que é pasar fome .

obrigado

LS

Banda in barbar disse...

Judith Pato disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blogue. ...
aparentemente também isto bate recordes

foi assis quando as grandes fiações da covilhã começaram a fechar às dúzias

ou o vale do ave ficou no vazio
agora centos ou milhares de lugares na construção civil e nos serviços perdidos por dia
isso era esperado...

de resto têm aumentado desde 2005
ninguém reparou porque os que emigravam eram substituídos por brasucas e moldavos

por falar nisso morreu um desses emigrantes de 2005 a semana passada nas ruas da rica suécia e desta vez nem no jornal apareceu...

é um recorde...
já não há tal e qual

e em angola escreve-se nos muros tugas go home...
(dantes eram só os fulas da guiné que nos apodavam de tugas)
é outro recorde

o mundo mudou
a taxa de suicídio continua nos 9,6 por cada 100 mil

em 10 milhões dava 960

em 10 milhões e meio dá 960+48
daria 1008

deu 1100 mais 10%

na última década do século XX
dava entre 700 a 800
mas não se contabilizavam gajos que acidentalmente caiam dum 5º andar enfiavam uma caçadeira nas fuças
e quando consideravam suicídio não contabilizavam os que morriam no hospital...
também não contabilizabam como homicídio miúdas mortas à pancada por velhos de 70 anos que tinham filhos enfermeiros

logo os recordes são subjectivos

serão todos quebrados daqui a uns meses e então quando chegar ao escudo
voltaremos aos recordes escondidos
como nos benditos anos 80

a miúda caiu e bateu com a cabeça....agente até ficou com ela e ela fez-nos isto

veio morrer aqui à porta

recortes de recordes

Nelson Miguel Bandeira disse...

No meio dos comentadores engravatados e pagos a peso de ouro ("país engravatado todo o ano/e a assoar-se à gravata por engano") que sufocam o éter, que se passeiam por esta "feira cabisbaixa" a dar palpites aos gritos (e preferimos mil vezes as senhoras do Bolhão), é bom encontrar alguém que nos ilumina (não sei se gostará muito deste verbo, desculpe...), ufa!, nos faz respirar um pouco...

Anónimo disse...

Medo...mto medo de arriscar pensar e agir diferente.

Tb eu que (felizmente) tenho trabalho cá e com experiencia internacional procuro uma nova oportunidade lá fora....
Aqui o sistema está viciado.
Só mto poucos me apoiam dizendo que mereço melhor. A minoria culpa-me por querer aspirar a mais. Que mentalidade destrutiva!