por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Março de 2012
Crónica 13/2012A polícia deveria ser uma presença racionalizadora e apaziguadora nas manifestações. Não é.
Nos dias que se seguiram à greve geral de dia 22 e à manifestação que teve lugar no Chiado, em Lisboa, onde várias pessoas foram agredidas pela PSP, o Ministério da Administração Interna lamentou num comunicado “os incidentes que envolveram jornalistas”, o ministro Miguel Macedo lamentou a "situação dos jornalistas" que foram agredidos pela polícia na quinta-feira e a PSP “lamentou o sucedido com os profissionais de imprensa”.
A Direcção Nacional da PSP, solícita, disse ainda mais e insistiu na “necessidade de os jornalistas se identificarem, colocando-se sempre do lado da barreira policial que os separa dos manifestantes em geral”. E a porta-voz da PSP, comissária Carla Duarte, lembrou que “qualquer manifestante pode dizer que é jornalista”, sugerindo, para melhor identificação dos profissionais de imprensa, o uso de coletes identificadores. E também Miguel Macedo pediu uma reunião com o Sindicato dos Jornalistas e com os directores dos órgãos de comunicação para definir regras de identificação dos jornalistas.
Das declarações percebe-se uma coisa: a PSP só queria dar porrada nos manifestantes e lamenta ter dado porrada também em jornalistas. Como, nas próximas manifestações, a PSP também só vai querer dar porrada nos manifestantes mas não em jornalistas, estes devem pôr-se atrás da linha da polícia, devidamente identificados, de preferência com coletes fluorescentes e sem tirarem fotografias de polícias de frente. Se não seguirem estas regras, a PSP não garante nada. Se os jornalistas estiverem ao pé dos manifestantes, habilitam-se.
Espanta a naturalidade com que tudo isto é dito pelo ministro e pela PSP. Espanta a naturalidade com que os jornalistas aceitam isto. E espanta a naturalidade com que toda a gente aceita tudo isto.
É que a razão da indignação pela intervenção brutal da polícia (PSP comum ou Equipas de Intervenção Rápida ou Corpo de Intervenção, porque a manifestação foi considerada uma ameaça de tão alto nível que estavam lá todos) não se deve ao facto de terem “agredido jornalistas” mas ao facto de terem agredido cidadãos que se manifestavam pacificamente - e alguns nem isso, pois houve pessoas tratadas brutalmente que eram apenas turistas a tomar café.
É tão inaceitável que um fotógrafo seja agredido pela polícia quanto é inaceitável que um manifestante comum seja agredido. Haveria uma agravante na agressão se ela tivesse tido lugar por se tratar de um jornalista - pois a polícia estaria a cometer o duplo crime de agressão e atentado à liberdade de imprensa. Neste caso porém, segundo a própria polícia, os jornalistas só foram agredidos porque pareciam cidadãos comuns.
A resposta corporativa dos jornalistas compreende-se. Mas esperaríamos da classe uma posição mais cidadã e uma exigência de tratamento cívico de todos os cidadãos - jornalistas ou não.
A PSP diz ter sido agredida por chávenas e pires - outras testemunhas garantem que o primeiro ataque foi da polícia - mas, mesmo que isso tenha acontecido, merecerá uma carga da polícia? Vídeos disponíveis mostram elementos da polícia distribuindo bastonadas e pontapés a pessoas que, claramente, não constituem uma ameaça. Poder-se-á dizer que os polícias - um deles dizia - estavam a reagir ao stress (parece que não há nada melhor para descontrair que dar um pontapé numa mulher que vá a passar). Mas os profissionais da PSP, homens treinados (espera-se) e a quem se entregam armas de fogo, ficam em stress com o arremesso de uns projécteis de ocasião? Imagina-se o que acontecerá nas discussões domésticas.
Claramente, a PSP não sabe o que faz e as suas chefias sabem menos ainda. A PSP não percebe que a sua primeira função numa manifestação é proteger o direito à manifestação, além de proteger pessoas e bens no perímetro da manifestação. Não é sua função infiltrar manifestações para acirrar os ânimos dos manifestantes e incitá-los a agressões. Nem empurrar manifestantes para os provocar fisicamente. Nem rachar cabeças para reduzir o stress.
Aliás, o que fazem, neste contexto, os guardas a atacar manifestantes à bastonada e com armas de fogo à cinta? Quererá o ministro Miguel Macedo que algum polícia mais stressado se alivie a tiro, irritado pelo pires que lhe bateu no capacete? Pensará o Governo que essa seria talvez uma boa maneira de desincentivar contestações de rua? Não seria. O Governo está a brincar com o fogo.
A polícia deveria ser uma presença racionalizadora e apaziguadora nas manifestações. Não é. A sua actuação é provocadora e gratuitamente brutal.
Deveria ser dialogante, calma e firme. Não é. É arruaceira e parece tão nervosa como o ministro. Deveria ter como preocupação garantir que a manifestação corre pacificamente e que os direitos dos cidadãos são respeitados. Não tem.
A polícia parece ter ordens para considerar que as manifestações que contestam o Governo são para reprimir pela força. Não devia ter. (jvmalheiros@gmail.com)
3 comentários:
Esperemos que seja só o governo a brincar com o fogo.
"A resposta corporativa dos jornalistas compreende-se"?!! Eu, e espero não ser só eu, não a compreendo. Ainda antes das habituais tretas de ministros e polícias nestas ocasiões, já o sindicato dos jornalistas caucionava as agressões a manifestantes e transeuntes, quando vieram com a "indignação" pelas agressões aos seus associados, sem uma única palavra (pelo menos nas transcrições nos próprios jornais...) acerca da actuação geral da polícia na manifestação. Aliás, o habitual silêncio (cobertura?) dos jornais ao que se passa habitualmente com o modo como as polícias actuam só pode ter, objectivamente, um nome: cumplicidade. Se não fosse as televisões, e obviamente pela dimensão de "espectáculo" que as imagens garantem e ainda menos se saberia acerca do que se passa e ainda mais eficaz seria a intoxicação ideológica que os jornalistas veiculam.
carlos
A ausência de um texto destes estava a ser um enxovalho para a profissão de jornalista. Obrigado. Paulo C
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