por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Janeiro de 2012
Crónica 2/2012
Em democracia, não é admissível que um político jure lealdade e obediência a uma organização secreta
Há um lado em mim que simpatiza com a ideia da Maçonaria. Simpatizo com os ideais republicanos e igualitários que estiveram na origem da moderna Maçonaria, com a sua crença na educação e na cultura como instrumentos de promoção do bem-estar social, com o princípio da solidariedade entre os seus membros e uma prática de entreajuda nos casos de necessidade, com o culto de uma certa ideia de honra, que preza de forma particular a palavra e o compromisso.
Há um lado infantil em mim que simpatiza até com a clandestinidade da Maçonaria. Com a ideia de segredo e do conhecimento privilegiado associado a esse secretismo. Com o mistério e com a promessa de aventuras que oferece a pertença a uma tal irmandade. Com o poder insuspeito que o segredo dá. E não só com isso: também com as senhas secretas, os apertos de mão secretos, os sinais secretos, os símbolos secretos, as reuniões secretas.
Há também um lado em mim que antipatiza profundamente com a ideia da Maçonaria. Com o seu esoterismo serôdio, com a piroseira hollywoodesca dos rituais (já viram aqueles aventais?), com aquela confusão de crença racionalista e de Supremos Arquitectos para todos os gostos. Com a sua cultura misógina e machista. Com as disputas entre lojas e obediências, as discussões sobre ritos e tradições, as cisões e os grupos irregulares, que fazem qualquer partido trotskista parecer um exemplo de solidez.
E, para além destas reacções perante a ideia de Maçonaria, sinto uma profunda aversão pela prática da Maçonaria. Se havia ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, generosidade e abnegação na origem da Maçonaria, eles hoje parecem estar tão presentes nas lojas maçónicas como em qualquer fast food. Claro que há muitas Maçonarias e não se pode falar como se a Maçonaria fosse uma única, mas há uma teoria e uma prática predominantes. Dizer que não se pode falar de Maçonaria porque ela representa uma realidade plural é tão sem-sentido como dizer que não se pode falar de Igreja Católica ou de socialismo ou da cidade de Lisboa pela mesma razão.
A verdade é que a Maçonaria é um grupo (vários grupos) dedicado ao tráfico de influências. Em defesa de algum valor? Em nome de alguma ideia? Em prol de alguma ideia de progresso? Não. Nem sequer isso se pode dizer em seu benefício. A Maçonaria defende a Maçonaria, sem estados de alma. Se, na origem, a ideia de entreajuda servia um interesse maior, porque se tratava de potenciar a capacidade de intervenção social dos “homens bons” em defesa de toda a comunidade, hoje em dia trata-se apenas de defender os interesses pessoais dos elementos do grupo em nome dos interesses pessoais dos elementos do grupo. Uma mão lava a outra, as duas lavam a cara. O cartão do clube garante influência, a jura de segredo reforça laços, a obrigação de entreajuda justifica todos os tráficos. A Maçonaria transformou-se numa máquina para aceder ao poder e influenciá-lo.
António Arnaut pode dizer que quem entra na Maçonaria com intuitos venais não passará de aprendiz e acabará por ser expulso e é possível que as coisas se passassem assim na sua loja, mas a realidade conta-nos outra história: da P2 à Mozart, as lojas da Maçonaria não conquistaram uma boa reputação. A reputação é aliás tão sulfurosa que é estranho que haja verdadeiros homens bons que ainda por lá andem.
Organização assumidamente secreta em tempos, hoje classificada eufemisticamente pelos membros como “organização discreta” ou “organização com segredos”, a Maçonaria é, como os próprios dizem, uma “obediência”. E é por ser uma obediência a certas ordens, por implicar uma lealdade a certas ideias e o apoio a certas pessoas, que não é admissível que um político eleito não reconheça publicamente a sua pertença ao grupo.
A Maçonaria não pertence à vida privada. A Maçonaria é uma organização política, que visa actuar na esfera pública. Que exige lealdade, obediência, segredo, que possui um programa, que milita para atingir certos objectivos. Não está em causa o seu direito à existência, nem o direito a aceitar como sócios as pessoas que bem entenda – desde que nada nos seus objectivos contrarie a lei. Mas os cidadãos têm direito a conhecer as lealdades de todos os que elegem para cargos públicos. Não se admitem lealdades secretas numa democracia. Um deputado não pode ser secretamente membro de uma organização. João Cravinho, maçon, compreende isto e defende que os maçons se identifiquem como tal. Teresa Leal Coelho, vice-presidente da bancada do PSD, acha que não é preciso e justifica que "todos os cidadãos têm interesses privados”. Teresa Leal Coelho não percebe que um deputado – ou um ministro – tem uma obrigação de transparência superior à do cidadão anonimo. E não perceber isso é não perceber o que é a democracia. Um político tem a estrita obrigação de tornar públicos todos os seus interesses e todas as suas lealdades – e não apenas algumas, de forma seleccionada, conforme os interesse do momento, como fazem actualmente nos seus currículos. Um cidadão tem o direito de saber a que organizações pertence um deputado, a que ordens obedece um ministro, que princípios defende o dirigente de um partido. Será que temos estado a eleger deputados da Maçonaria sem o sabermos? Será a Maçonaria o maior partido português? Serão a Maçonaria e a Opus Dei os verdadeiros partidos?
Não penso que o exercício de cargos políticos seja incompatível com a participação na Maçonaria ou noutra organização política ou religiosa, mas a transparência sobre essa participação é uma condição essencial para o exercício de uma actividade política em democracia. (jvmalheiros@gmail.com)
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