terça-feira, janeiro 17, 2012

Filhos e septuagenários ou a política rasca

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Janeiro de 2012
Crónica 3/2012
Das pequenezas e das misérias de dois ex-ministros das Finanças do PSD

1. Somos um país pequeno, onde todos nos conhecemos, nos cruzamos na rua e temos amigos comuns. Em Portugal não há seis graus de separação. Há só dois. Se há alguém que eu não conheço, há certamente alguém que nos conhece a ambos. Para mais, como somos um país profundamente desigual e classista, com um fosso imenso a separar uma imensa massa de pobres indiferenciados de uma pequena classe média e uma pequena casta de profissionais, estes encontros são ainda mais comuns nestes últimos grupos. Na política e nos negócios (quase a mesma coisa), nas artes e na academia, estamos sempre a cruzar-nos. Os mesmos. É por isso que vemos tantas vezes os mesmos nomes, os mesmos apelidos, relações familiares. Os negócios em Portugal estão na mão de uma só família há cem anos. Estamos todos tão próximos que é quase impossível não contratar um primo, não chocar com um tio, não dar aulas a uma sobrinha. Portugal é pequeno mas, se excluirmos os pobres, que não contam, ainda somos mais pequenos. Somos o Luxemburgo. A Islândia. O Liechtenstein.

É por isso que há tantos filhos e sobrinhos. Um exercício interessante é consultar a formação dos Governos. Ou das administrações das empresas. Os apelidos repetem-se. É normal apresentarmos pessoas como sendo “filhos de”. Para não contar as vezes em que o elemento curricular é sussurrado quando a pessoa volta costas. “É filho de...” “Ah!...” E estamos constantemente a descobrir parentescos, muitas vezes discretamente ostentados. Um dia descobrimos que a Maria Fulana é filha de Fulana de Tal mas não usa o Tal para que toda a gente saiba que não se quer valer do nome. Ou descobrimos que a Maria Fulana passou a usar o Tal porque ele não tinha sido sussurrado a uma certa pessoa, com prejuízo para a sua carreira. Os filhos e os sobrinhos estão por todo o lado. E, se se levanta alguma dúvida sobre o critério da nomeação, do convite, da promoção, logo alguém nos garante que é competentíssimo e cultíssima. Não vale a pena saber se não haverá outro, com outro apelido, também competentíssimo. É provavel, aliás, que ele seja competentíssimo, pois os filhos da oligarquia tem acesso garantido à melhor formação. Podemos apostar que não haverá nos próximos trinta anos um ministro nascido na Cova da Moura, mas a maioria das pessoas não percebe que é essa a nossa desgraça.

O nepotismo é algo tão natural, a oligarquia tão habituada a não ser posta em causa, que o competentíssimo Jorge Braga de Macedo, ex-ministro do PSD, colaborador de Passos Coelho e presidente do Instituto de Investigação Científica Tropical, não se dá sequer ao trabalho de explicar por que razão o nosso instituto (que ele dirige) financiou três exposições da sua filha. E que tal definir critérios prévios para fazer as coisas? Não é difícil e até é parecido. Em vez de consultar o apelido, vê-se se a pessoa, o projecto e o processo respeitam os critérios.

3. Podia acontecer que Manuela Ferreira Leite tivesse aquele problema de ter uma língua mais rápida do que os neurónios, uma condição em que as palavras apenas são submetidas ao escrutínio da mente depois de terem sido enunciadas. Acontece. Muitos políticos parecem sofrer do mal. Nestes casos, porém, mal o cérebro escrutina o que lhe entrou pelos ouvidos, usa em geral a capacidade de corrigir a posteriori o que não teve capacidade para formatar a priori. E dizem-se coisas como “Não era bem isto que eu queria dizer”, “Deixem-me explicar melhor porque receio ter dado uma ideia errada”, “Posso responder de novo e depois vocês apagam a primeira resposta?” etc. - como fazemos todos quando falamos de uma forma irreflectida, ainda que não se sofra da patologia.

No entanto, quando a Dama de Ferro Nacional diz o que disse, em resposta a uma pergunta sobre o que pensava da possibilidade de restrição do acesso à hemodiálise aos indivíduos com mais de 70 anos (“Tem sempre direito, se pagar”) e apenas corrige o que diz depois de uma chamada de atenção do socialista António Vitorino, é provável que tenha dito da primeira vez aquilo que queria dizer. Lembre-se aliás que a pergunta (dirigida a António Barreto mas a que Ferreira Leite quis responder) já trazia suficientes sinais de alarme, porque foi colocada nestes termos: “Não acha abominável que se discuta se alguém que tem 70 anos tem direito à hemodiálise ou não?” Mas Ferreira Leite não só não achou abominável como achou muito bem, porque o SNS não dá para todos e é preciso escolher.

A resposta de Ferreira Leite foi a de uma verdadeira tecnocrata: como o SNS não pode pagar tudo e uma pessoa com mais de setenta anos possui um valor económico negativo (não produz e gasta muito), a decisão mais eficiente é deixar de pagar hemodiálise a esta pessoa - que, no entanto, se tiver meios próprios, poderá fazê-la por sua conta. A proposição, de perfil eugenista e pseudo-justificada com o habitual palavreado de gestão, vai na linha das propostas do PSD em termos de saúde, educação, segurança social e trabalho e demonstra que uma das mentiras mais descaradas da política portuguesa é a auto-definição do PSD como partido humanista.


Manuela Ferreira Leite esteve na origem da expressão “geração rasca”, cunhada numa reflexão de Vicente Jorge Silva quando, numa manifestação de estudantes, alguns decidiram mostrar o rabo à então ministra da Educação. Ferreira Leite provou mais uma vez que uma política rasca pode mostrar coisas muito mais ofensivas. (jvmalheiros@gmail.com)

Sem comentários: