por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Fevereiro de 2011
Crónica 7/2011
A revolução de massas pacífica e vitoriosa em nome da democracia e do doce perfume da liberdade
É verdade que não sabemos se o exército egípcio vai manter as suas promessas. É verdade que não sabemos se haverá liberdade de expressão e de reunião para poder fundar partidos e fazer uma campanha eleitoral livre. E nem sequer sabemos se as eleições serão mesmo livres. E não conhecemos a real implantação dos fanáticos islamistas, nem sabemos até que ponto as posições conciliadoras da Irmandade Muçulmana das últimas semanas são tácticas ou sinceras. Nem sequer sabemos que percentagem da população é que faz parte ou se revê na “geração Facebook” que desencadeou a contestação que se transformou em revolução e que fez cair o regime. E, se é verdade que Mubarak caiu, nem sequer podemos dizer com rigor que o regime caiu, porque os militares são os mesmos de antes e o Governo é quase o mesmo de antes.
Tudo isso é verdade. Mas a verdade que se sobrepõe a todas as outras é que, para já, a ditadura foi decapitada, o povo egípcio, seguindo o exemplo do povo tunisino, levou a cabo uma revolução de massas pacífica e vitoriosa em nome da democracia e que, num Egipto que conheceu milénios de autocracia se respira hoje, para usar as palavras de Farah, uma jovem manifestante de 23 anos, “o doce perfume da liberdade”. Essa é a verdade mais importante porque ninguém quer perder a liberdade que se provou e porque o exercício cívico da liberdade que vimos no Egipto deita por terra todos os argumentos paternalistas que sustentam as ditaduras.
Um perito no mundo árabe, entrevistado há dias num canal de televisão, depois de traçar os cenários possíveis para o futuro do Egipto, dizia, com uma sinceridade desarmante e uma felicidade evidente, algo como “Eu estou a dizer isto mas a verdade é que não faço a mínima ideia do que vai acontecer, ninguém faz a mínima ideia. Porque ninguém fazia a mínima ideia de que isto ia acontecer e aconteceu”. Alguém sabia que havia uma geração Facebook no Norte de África há três meses?
Lembram-se do que se dizia dos países árabes, onde a democracia era impossível? Quem nos diria que uma tal lição de civismo e democracia, de amor pela liberdade, de coragem e de não-violência nos viria da Tunísia e do Egipto? É verdade que há pessoas como o comerciante Ahmad Sudain, que Paulo Moura citava ontem aqui no Público, que acham que o Egipto está perdido porque os egípcios são gente selvagem que não sabem viver em democracia. Mas esses são os que olham para o passado e o futuro ainda não existe. Nem olhando para a frente se consegue vê-lo. É preciso fabricá-lo. Como estão a fazer os jovens que, depois da revolução limpam a praça Tahrir, com uma vassoura numa mão ou uma garrafa de diluente, tentando limpar os graffiti nas paredes. Ou os sites que estudam a sua transformação em movimentos cívicos, os movimentos cívicos que consideram a sua transformação em partidos, os grupos de vizinhos que criam comissões de bairro para experimentar o poder de decidir do seu futuro, os amigos que aprendem a discutir política nos cafés (lembram-se do 25 de Abril?...), os artistas que querem estar em todo o lado, os cidadãos que distribuem panfletos a dizer “Hoje este país é o teu país. Já não temos desculpas”.
A contestação tunisina e egípcia pediu o impossível e o impossível aconteceu (há um eco que grita “Soyez réalistes...”). E agora? Agora que já se sabe que esse desejo do impossível a que se chama esperança pode afinal ter um fim feliz, pelo menos por enquanto, pelo menos para já, agora que se sabe que tudo é afinal possível, já não se trata de esperança mas de paixão. Paixão para construir o futuro. Há quem faça um sorriso cínico ao ouvir as palavras de Farah: “Talvez o mundo mude depois disto”. Mas nós sabemos que isso é possível. Talvez. Por agora, isso chega-nos. (jvmalheiros@gmail.com)
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