por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Fevereiro de 2011
Crónica 5/2011
É difícil ser objecto de múltiplos gestos de cortesia por parte de alguém e não se sentir tentado a retribuir Crónica 5/2011
Na semana passada, entre o discurso Sputnik de Barack Obama, a entrevista-choque de Carlos “Bibi” “Casa Pia” Silvino, a contestação popular na Tunísia (primeiro) e no Egipto (depois), ficámos a saber que muitos políticos portugueses acham a coisa mais natural do mundo receber presentes das empresas, que o facto não só não afecta minimamente a sua independência como lhes agrada bastante e que as únicas pessoas que pensam que isso não se faz são os cidadãos dos países nórdicos por terem a mania da honestidade por causa de serem protestantes e terem aquelas igrejas sem dourados.
Estas novidades foram-nos brindadas por testemunhos de várias personalidades no âmbito do processo Face Oculta, no qual José Penedos, ex-presidente da REN (Redes Energéticas Nacionais) é acusado de corrupção e dessa bizarrice da nomenclatura jurídica portuguesa que é a “participação económica em negócio”. A oferta de diversos presentes a José Penedos pelo empresário Manuel José Godinho é uma das questões que consta do processo e foi a propósito dela que os presentes foram objecto da atenção do tribunal.
Políticos tão respeitados como Jorge Sampaio e António Vitorino consideraram que os presentes dados a gestores ou políticos são "mera cortesia" (Sampaio) e que eles estão profundamente enraizados na cultura dos países do sul da Europa, como Portugal e Espanha (Vitorino).
Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva e futuro ministro das Finanças de Pedro Passos Coelho (segundo Marcelo Rebelo de Sousa), foi quem foi mais explícito nas suas afirmações. Catroga admitiu que sempre tinha recebido presentes ao longo da sua carreira de 40 anos, considerou que “o problema dos presentes não está em quem os recebe ou na intenção de quem os dá” porque “as pessoas recebem presentes e mantêm a sua independência” e que eles são “perfeitamente normais no contexto social português”.
Se Sampaio falara de canetas e vinho do Porto, Catroga menciona, como presentes recebidos, pratas, vinhos raros e livros e, refere o Correio da Manhã “até brincou ao dizer que quando saiu do Governo o seu Natal passou a ser mais ‘reduzido’”.
Há uma coisa que se pode dizer desde já: se, em vez de Catroga, estas declarações tivessem sido proferidas por um jornalista deste jornal que está a ler, ele/ela teria sido objecto de um inquérito para averiguar se o seu comportamento não infringia as normas definidas no Livro de Estilo, onde se determina que os jornalistas devem devolver prendas recebidas de um valor estimado superior a 60 euros – e se colocam limites mesmo às que não excedam esse valor.
Para além disso, também se pode dizer que, além dos cidadãos dos países nórdicos, há pelo menos uma pessoa nos países do Sul da Europa que acha muito mal que os políticos recebam presentes seja de quem for (a não ser da família e dos amigos) e que acha mesmo que a prática de receber presentes devia ser pura e simplesmente proibida para os governantes: eu. E desconfio que pode haver mais algumas pessoas que concordem comigo.
É evidente que não é a limitação das prendas que garante a honestidade dos governantes, dos políticos ou dos gestores públicos. Como não é a sua existência que prova prevaricação. Mas a cultura que permite e que acha que estas prendas apenas lubrificam as relações é a mesma que alimenta a promiscuidade entre os negócios e a política e que banaliza a influência dos grupos de interesses privados na coisa pública.
Como dizia Sampaio, é evidente que “há prendas e prendas”. Por um lado, há prendas institucionais, que são ofertas ao Estado (o Museu da Presidência da República está cheio delas). Mas as prendas pessoais devem ser, se não proibidas, pelo menos limitadas e conhecidas do público. Que tal uma listinha na Internet? (jvmalheiros@gmail.com)
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