por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Julho de 2010
Crónica 26/2010
Não há verdadeiras elites sem verdadeira democracia nem verdadeira democracia sem verdadeiras elites
Nos últimos dias, em debates públicos onde estive presente, vi abordar por mais de uma vez, em relação ao sistema educativo e de formação, a questão da construção de élites versus democratização ou da aposta na excelência versus massificação. Em geral, quando esta questão emerge, assistimos sempre de um lado (à esquerda) a uma defesa envergonhada da suposta construção da elite. “Defesa”, por se considerar que há homens e mulheres com talentos excepcionais a quem devem ser dadas todas as possibilidades de os desenvolver (o “pleno desenvolvimento” de que fala a Declaração Universal dos Direitos Humanos) e porque um ensino de qualidade deve ser capaz de produzir homens e mulheres dotados de competências para servir da melhor forma a sociedade (uma necessidade de todos). “Envergonhada”, por se considerar que esse objectivo pode colidir de alguma forma com o objectivo do acesso generalizado ao ensino de qualidade (os recursos não chegam para tudo) e porque se sente que esta aposta na construção destas élites pode pôr em causa esse sentimento forte de igualdade entre todos os seres humanos que está na base do ideal republicano (todos são iguais mas uns são melhores que os outros).
A questão da elite versus democratização é uma falsa questão que seria bom que o sistema educativo e os seus profissionais arrumassem de vez. E é uma falsa questão porque não há verdadeiras elites sem verdadeira democracia nem verdadeira democracia sem verdadeiras elites. Sem democracia existem castas de dirigentes que concentram privilégios, mas isso não faz deles uma elite. Uma elite só o é com provas dadas.
Uma elite é o grupo dos melhores mas, para termos a certeza de que temos os melhores, temos de poder escolher de entre todos.
No fundo todos sabemos isto: se queremos ter a certeza de que vamos ter os melhores craques de futebol, sabemos que basta dar a todas as crianças do país a possibilidade de jogar futebol. Alguns vão jogar suficientemente bem para ter prazer nisso, vão continuar a jogar, a treinar, e alguns deles serão excepcionais. Basta fornecer a todos as mesmas (e boas) oportunidades: tempo, locais, equipamentos, treinadores.
As famílias judias, pobres e ricas, fazem isto desde sempre com os seus filhos na área da formação musical. Aos quatros anos os pais põem um violino ou um piano na mão dos filhos. Todos os talentos são identificados porque as oportunidades de formação são virtualmente universais, ubíquas. Ninguém deixa de aprender por falta de oportunidade, porque o seu talento não foi detectado. O resultado? Há imensos intérpretes judeus excepcionais nas elites musicais. E não é uma questão de privilégio – é mesmo o contrário do privilégio. É o acesso universal.
Em Portugal temos as elites anémicas que temos porque a nossa democracia é tão imperfeita que ainda hesitamos se devemos dar uma educação física, uma educação musical e uma educação científica decente a todas as crianças – ou reservar isso apenas para alguns – para os mais bem comportados ou para os que têm os pais mais bem comportados. Há quem faça essa selecção e lhe chame “promoção da excelência”. Não é. É apenas uma eternização de privilégios.
A falta de democratização gera fracas elites. Há menos por onde escolher. Ainda há imensas áreas onde apenas escolhemos de entre os filhos dos ricos – o ensino universitário é ainda principalmente para as classes abastadas. Ou escolhemos de entre os filhos dos educados. Noutras só escolhemos de entre as crianças que vivem nas cidades. Noutros casos só escolhemos de entre os rapazes. Em muitas áreas (na política, por exemplo) escolhemos de entre um universo que só contém metade da população porque excluímos quase todas as mulheres. A estratégia da excelência? Chama-se democracia. (jvmalheiros@gmail.com)
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