por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Julho de 2010
Crónica 25/2010
Crónica 25/2010
A Face Oculta é uma conspiração anti-Sócrates? A Casa Pia nunca existiu? O PEC é necessário? O Estado deve ter golden shares?
Em 2007, o site WikiLeaks – onde é possível divulgar anonimamente documentos classificados para denunciar comportamentos criminosos e abusos de Estados ou organizações – publicou milhares de páginas com as compras realizadas pelas forças armadas americanas para os contingentes em serviço no Iraque e no Afeganistão.
Os responsáveis do site esperavam que este filão de informação fosse explorado pelos media e que desse origem a vários trabalhos jornalísticos, já que a lista permitia levantar questões sobre as tácticas empregadas pelos militares americanos – e levantava, nomeadamente, a suspeita de uso de armas ilegais. A fuga, porém, recebeu uma atenção mínima por parte dos media convencionais.
Julian Assange, o hacker australiano que fundou o WikiLeaks, ficou furioso com a indiferença dos media, mas a verdade é que este tipo de reacção está a tornar-se cada vez mais o comportamento-padrão dos media – mesmo nos países onde o jornalismo de investigação tem pergaminhos históricos.
A fragilidade económica que afecta actualmente a imprensa traduz-se num emagrecimento dos seus quadros (em particular dos quadros de jornalistas), numa necessidade de reduzir custos no funcionamento corrente e numa urgência na captação de novas receitas. O emagrecimento das redacções tem como consequência a aposta em jornalistas generalistas, capazes de cobrir qualquer tema. Se forem jovens, melhor, porque serão mais baratos e menos reivindicativos. A redução de custos (que é geralmente chamada “procura de efi ciência” e outros eufemismos semelhantes) significa que cada jornalista tem cada vez menos tempo para estudar os temas, para se formar, para contactar fontes, para viajar, para sair da redacção e ver as coisas com os seus olhos. E menos tempo para escrever.
Analisar a lista de compras do Exército americano teria exigido um especialista na área (a um leigo a lista não diz nada), tempo suficiente para a estudar e uma equipa para confirmar dados e fazer pesquisa suplementar. E, o que não seria mais fácil, capacidade para resistir às pressões para não publicar nada que pudesse ferir a imagem dos militares americanos. Tudo isto sem nenhuma garantia à partida de que o trabalho jornalístico que daí resultasse fosse ter um grande impacto. Apenas o exercício de algo que, há uns anos, a imprensa considerava ser o seu dever central: a fiscalização dos poderes, o escrutínio das acções levadas a cabo em nome do público, a garantia do respeito dos direitos humanos.
A fragilidade económica das empresas de media é o seu pior inimigo. Porque uma empresa que não se pode dar ao luxo de hostilizar nenhuma eventual fonte de receita encontra-se à mercê de todos os poderosos. E porque um jornalista que não tem tempo nem recursos para investigar um assunto encontra-se muito mais dependente das informações que as fontes (sempre partes interessadas) lhe transmitem.
O jornalismo “eficiente” que, de forma crescente, é levado a cabo pelos media divide-se assim entre os faits divers dos jornais menos sérios e o “este disse, aquele disse” dos mais sérios. No meio, o leitor interroga-se sobre quais serão os factos e não sabe o que pensar. A Face Oculta é uma conspiração anti-Sócrates? A Casa Pia nunca existiu? O PEC é necessário? O Estado deve ter golden shares?
E este jornalismo, que deixa de ser questionador, crítico, céptico, incómodo, profundo e rigoroso, entra no nono anel do círculo vicioso quando começa a ser criticado pelos poderes pela sua falta de qualidade, de isenção e de rigor (o que é verdade) e começa a ser ameaçado “para o seu bem”, de um mais apertado controlo das autoridades. Vemo-lo em Portugal, na Grã-Bretanha (talvez o país com a melhor imprensa do mundo), por todo o lado.
A descida aos infernos vai continuar até que os jornais e os leitores percebam que o bom jornalismo vale o seu peso em ouro. (jvmalheiros@gmail.com)
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