por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Fevereiro de 2009
Crónica 3/2009
A tortura reforça a determinação do inimigo, oferece-lhe a superioridade moral e permite-lhe engrossar as suas fileiras
W. H. Auden, num dos seus mais famosos poemas, September 1, 1939, lembra algo "que todos os miúdos aprendem na escola": "Aqueles a quem é feito mal, fazem mal por sua vez" ("Those to whom evil is done/Do evil in return").
Pode-se dizer que é uma banalidade que vemos confirmada pela experiência pessoal e por inúmeros estudos sociais, mas é uma banalidade que não está incorporada nas práticas políticas e menos ainda nas situações de conflito.
É evidente que um daqueles palestinianos cujos filhos morreram soterrados num daqueles bombardeamentos "precisos" da aviação israelita sentirá um ódio imenso e indiscriminado por tudo aquilo que possa ser associado aos autores desse crime. Da mesma maneira que um israelita cujo filho morreu num ataque bombista sentirá o mesmo ódio indiscriminado pelo outro lado. É destes ódios que se alimentam todos os conflitos, até chegar alguém que tem a coragem de parar o círculo odioso e de resistir à violência em nome do futuro. De uma forma geral, compreendemos - e esta "compreensão", que decorre da racionalidade, não tem nada de aceitação ética - que um homem ferido desta forma sem esperança se torne ele próprio um animal selvagem, mas esperamos que os estados e outras instituições consigam encarnar o melhor que há em nós, resistir à selvajaria e ter a coragem de fazer a paz. Os bombardeamentos de Gaza foram, assim, para além do mal que representaram em si, sementeiras de ódio e de anti-semitismo que irão dar origem a novas violências e tornar mais distante a paz - por promissoras que sejam as actuais negociações.
Que há muita gente que não percebe que o ódio gera ódio nota-se, nomeadamente nas críticas ou nas reticências ao facto de Obama, no segundo dia da sua presidência, ter posto fim às ordens que autorizavam o uso de tortura, como se a medida, apesar de moralmente justa, representasse um abrandamento da determinação na luta contra o terrorismo.
A oposição ao abandono da tortura ou as hesitações perante a medida são surpreendentes. Antes de mais, pela condenação moral que a tortura tem forçosamente de suscitar. Não se pode defender os direitos humanos e aceitar que se abram nesses direitos algumas excepções para alguns seres humanos, escolhidos por um qualquer poder. Por outro lado, porque a tortura - e são os próprios especialistas de informações que o dizem - é um meio ineficaz, ineficiente e pouco fiável de recolha de informações e pode ser substituído com vantagem por meios legais. Finalmente, porque o instrumento da tortura é ele próprio gerador de ódio e violência e alimenta o conflito que se pretende vencer - reforçando a determinação do inimigo, oferecendo-lhe a superioridade moral e engrossando as suas fileiras.
Um especialista militar americano, Matthew Alexander (um pseudónimo), que dirigiu uma equipa de interrogadores no Iraque, escreveu um livro sobre a questão, intitulado How to Break a Terrorist. Aí, Alexander explica como ficou convencido no Iraque de que a prática da tortura (que ele e a sua equipa se recusaram a praticar) e os abusos levados a cabo nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo foram prejudiciais aos EUA, pois facilitavam o recrutamento da Al-Qaeda e motivavam os seus combatentes. "O número de soldados americanos que morreram por causa da nossa política de tortura nunca se saberá com exactidão", escreveu Alexandre num artigo de opinião publicado em Novembro passado no Washington Post, "mas é razoável dizer que é próximo do número de vidas perdidas em 11 de Setembro de 2001".
Jornalista (jvm@publico.pt)
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