por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Janeiro de 2009
Crónica 1/2009
O problema com o conceito da primazia dos fins é que os fins são inatingíveis e aquilo com que vivemos são os meios
Imagine-se que o gigantesco Bairro da Cova da Burra, aqui nos arredores de Lisboa, se tinha transformado no coito do pior tipo de malfeitores, num daqueles bairros de lata impenetrados pela polícia. Imagine--se que a violência tinha invadido o quotidiano do bairro, dominado por um gang cujos elementos, com a impunidade garantida pela força, saíam de vez em quando para atacar e roubar os pacatos cidadãos dos bairros limítrofes. Carjackings e assaltos a residências, à mão armada, tinham-se tornado frequentes. E alguns dos assaltos tinham-se mesmo saldado por mortes. Num ano já tinham morrido seis pessoas na sequência destes assaltos.
A indignação popular exigia protecção policial eficaz e o castigo dos responsáveis pelos crimes e, um dia, várias forças policiais com apoio de forças militares lançaram uma gigantesca rusga. Cercaram o bairro para evitar fugas e entraram pelas ruas num violenta investida. Nos dias se-
guintes, o saldo da operação policial seria anunciado: 500 mortos, entre os quais várias famílias inteiras e dezenas de crianças. O comunicado da polícia lamentava as crianças mas sublinhava que, entre os mortos, estavam muitos dos criminosos implicados nos crimes violentos. E lembrava que um polícia tinha sido morto, para pôr as coisas em perspectiva.
Qual seria a reacção do público? Alívio perante a manifestação de força? Alívio por os assaltos e homicídios se terem reduzido - apesar de não terem desaparecido? Ou considerariam a operação como uma carnificina injustificável?
Atrevo-me a antecipar a reacção generalizada: horror perante a desproporção da reacção, uma gigantesca indignação e nojo perante as mortes de tantos inocentes e a violência descontrolada. Se, depois disto, aparecesse um ministro do Interior a defender a polícia, um primeiro--ministro a concordar com o ministro e uma oposição a concordar com o Governo, isso quereria dizer que teria chegado o momento de as pessoas de boa-vontade deixarem o país.
O que é absolutamente inaceitável na actual ofensiva israelita contra Gaza é esta ideia - estalinista por excelência - de que os fins justificam os meios. De que dez crianças palestinianas mortas são justificadas para evitar a morte de um israelita, de que o bloqueio, a fome, o frio, a falta de medicamentos, os sofrimentos, as mortes de civis são justificados porque o único objectivo que importa é poupar vidas de cidadãos israelitas e todas as outras vidas são de um deus menor. O problema com o conceito maquiavélico da primazia dos fins é que os fins são inatingíveis e aquilo com que vivemos são os meios.
Há uma ideia defendida pelo poder israelita - que visa gerar a autocensura dos críticos - de que se critica Israel porque se é contra a sua existência, porque se é anti-
-semita, porque se está do lado dos outros. É evidente que a crítica é desonesta. Critica-se Israel como se criticaria - com horror - uma força policial portuguesa que fizesse isso numa qualquer cidade. A ofensiva de Israel é indefensável em termos morais porque é cruelmente desproporcionada, porque não discrimina entre inocentes e culpados, combatentes e civis, soldados e crianças, porque encerra seres humanos há mais de um ano num ghetto sem condições de vida, sem saída, porque parece visar mais a aniquilação dos palestinianos que a derrota do Hamas. E não podemos deixar de denunciar isso - com horror. Israel parece não perceber a responsabilidade moral que tem por ser uma democracia e que não pode, por medo de dar parte de fraca, levar uma guerra até à aniquilação total do inimigo, homens, mulheres, velhos e crianças. Não haverá uma corda que ressoe na alma de Israel ao ouvir isto? Será que, para não correr o risco de serem outra vez vítimas, os israelitas estão dispostos a transformarem-se para sempre em carrascos?
Jornalista (jvm@publico.pt)
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