por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Janeiro de 2009
Crónica 2/2009
Era um privilégio ter alguém como a Tereza a olhar o mundo e a contar-nos o que via
ATereza fica ali muito mal. Muito mal. A fotografia é enorme. Devia ser uma foto pequenina, a uma coluna, como aparece sempre nos autores das crónicas, daquelas que quase não dá para se perceber nada da cara. E o nome aparece grande de mais. É uma coisa enorme. Devia aparecer mais pequeno, à cabeça, ou lá em baixo, a assinar o texto. Era assim que devia ser. É estranho ver o nome da Tereza Coelho ali tão grande em cima da foto e por baixo das duas datas, 1959-2009, como dois aperta-livros a segurar tudo e coisa nenhuma. Estes nem chegam a segurar 50 anos. É esquisito ver a vida da Tereza transformada ali num hífen. A Tereza é que escrevia os obituários. Agora houve alguém que se enganou e saiu ela no obituário. Fica muito mal no obituário.
Ela também está admirada por estar ali naquele papel, nota-se. Olha e percebe-se que sabe que não devia estar ali. Ela tinha sempre tantas coisas tão interessantes para fazer.
E o pior é que é um daqueles enganos sem remédio. O pior porque, tirando sair no obituário, a Tereza fazia quase tudo bem - pelo menos, não sei de nada que fizesse mal. Só fazia comentários justos, só falava de coisas interessantes, só escrevia textos inteligentes. Coisas trabalhadas, pensadas, surpreendentes, divertidas.
Numa prosa precisa, depurada, eficaz, contida, sempre witty, com uma fina ironia, sem um traço de pieguice e sempre poderosamente emotiva. Claro que se dissesse que os seus textos eram emotivos ela arquearia o sobrolho, blasée, com uma subtil estranheza giocôndica, como se não soubesse do que eu estava a falar, com o mesmo ar expectante e de calma surpresa com que olha desta fotografia.
A Tereza gostava de tudo o que estava debaixo da superfície, fascinavam-na as heterodoxias, as marginalidades, todas as transgressões, e gostava de escrever sobre o que a fascinava - as pessoas, no fundo. E os livros, claro. Tinha uma enorme exigência (antes de mais consigo, apesar do cultivado ar displicente) e isso reflectia-se na qualidade do seu trabalho.
A Tereza era uma daquelas pessoas que devia ter continuado a ser jornalista, mas que o jornalismo acolhe cada vez menos e que era quase inevitável que deixasse de o ser. Era um privilégio ter alguém como a Tereza a olhar o mundo e a contar-nos o que via. Não era uma jornalista do óbvio nem da espuma dos dias, mas alguém para quem a escrita e o jornalismo passavam sempre pela cultura, pelo estudo, pela crítica, pela discussão, pela reflexão, pela imersão total. A Tereza escrevia para tentar compreender e para nos fazer compreender algumas das coisas mais difíceis de perceber. E trabalhava com a paixão e com a ousadia com que aprendemos todos a trabalhar com o Vicente Jorge Silva, na Revista do Expresso dos idos de 80.
Não que não gostasse de futilidades, mas as futilidades na escrita da Tereza deixavam de o ser. No fundo era uma jornalista completamente fora de moda, uma jornalista para quem o jornalismo era antes de mais e acima de tudo uma actividade intelectual e não uma indústria de fast food.
É irónico dizer isto da Tereza, dela que gostava tanto da moda e das modas e que se deleitava em apanhar as novas tendências à saída da casca, sempre à la page em todos os sentidos. Acho que foi essa exigência que a levou a tantos jornais e revistas e depois aos livros. Onde estava muito bem.
Onde ela fica mesmo muito mal é neste obituário.
Jornalista (jvm@publico.pt)
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