Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Setembro de 2007
Em Cena 13/2007
No dia 21 de Janeiro de 2007, Manana Aslamazyan aterrou em Moscovo, no aeroporto de Sheremetyevo, vinda de Paris. Ao atravessar a alfândega, escolheu a saída dos passageiros que não têm nada a declarar e preparava-se para passar as portas quando lhe pediram para parar e para mostrar a sua bagagem, naquilo que parece ter sido uma fiscalização de rotina.
Quando mostrou o conteúdo da sua mala de mão, a polícia encontrou 5130 rublos (menos de 150 euros) e 550 euros na sua carteira e um envelope com 9000 euros, que disse serem um empréstimo pessoal feito por uma pessoa amiga.
Acontece que existe um limite de 10.000 dólares americanos (ou o equivalente) para a quantia que um cidadão russo pode trazer para o país sem a declarar na alfândega. A verba total que Manana Aslamazyan transportava excedia em 2567 dólares aquele limite legal. Aslamazyan explicou que se tinha tratado de um esquecimento, mas resignou-se a pagar uma multa e nos próximos dias esperou a respectiva notificação.
Nas semanas seguintes Manana Aslamazyan soube que o seu caso estava a ser investigado pelo Departamento de Segurança Económica do Ministério do Interior, que se preparava para a acusar de contrabando, uma acusação que pode ter uma pena de um a cinco anos de prisão.
O caso de Manana Aslamazyan tem uma relevância que excede o fait divers porque esta mulher de 55 anos, cidadã russa nascida na Arménia, é (ou era, na altura deste episódio) presidente de uma organização não-governamental chamada Educated Media Foundation (anteriormente dirigia a Internews Russia, que foi absorvida pela primeira em Janeiro deste ano) que se dedica à formação de jornalistas.
Aslamazyan é uma figura de primeiro plano no jornalismo russo não pela sua actividade directa como jornalista mas por essa actividade de formação que, ao longo dos últimos onze anos já abrangeu 15.000 profissionais da televisão regional.
Apesar (ou por causa) do seu prestígio junto da imprensa, a Internews nunca foi uma organização simpática para as autoridades. A sua tónica na defesa da liberdade de expressão e opinião, na responsabilidade profissional e cívica dos jornalistas, no princípio de que a primeira responsabilidade dos jornalistas é para com os seus concidadãos, na recusa de qualquer forma de censura, destinou-a a um confronto permanente com o poder cada vez mais concentrado e menos tolerante de Moscovo. A Internews tinha o cuidado de se manter afastada de qualquer actividade política e sempre foi prudente na emissão de juízos públicos que pudessem ser usados para limitar a sua esfera de acção. A Internews fazia formação de jornalistas e era tudo. Na opinião do Kremlin, porém, era de mais.
No dia 18 de Abril de 2007, uma brigada de polícias do Departamento de Segurança Económica do Ministério do Interior efectuou uma rusga na Educated Media Foundation. Ao longo de 11 horas, revistaram as instalações e analisaram os arquivos, acabando por confiscar documentos e os computadores da organização. Já não se tratava de uma infracção, nem sequer de um crime cometido por uma pessoa. O episódio da alfândega tinha sido empolado para se transformar numa acusação de lavagem de dinheiro à instituição dirigida por Manana Aslamazyan.
Aslamazyan só seria formalmente acusada (de contrabando de dinheiro) em 15 de Junho, mas a acusação não lhe pôde ser entregue. Prudentemente, Aslamazyan tinha partido para o estrangeiro, de onde pediu para ser julgada in absentia - o que o tribunal recusou.
As acusações lançadas contra Aslamazyan e a sua organização deram origem a um abaixo-assinado de mais de 2000 jornalistas, enviado ao Presidente Vladimir Putin, onde se pede a sua intervenção para garantir um justo tratamento de Aslamazyan, cujo trabalho é vivamente elogiado, e "pôr um fim à violência contra a Educated Media Foundation" que consideram estar a "prejudicar o país".
Putin foi recentemente interpelado a propósito deste caso e terá dito que Aslamazyan "pode voltar para a Rússia", acrescentando que "não se deve confundir um engano com um crime". Só que não foi apenas isso que Putin disse. O Presidente exprimiu dúvidas sobre a Educated Media Foundation, dizendo que "uma organização que é financiada com dinheiro estrangeiro não pode ensinar nada de bom aos jornalistas russos".
Aslamazyan não tem hoje formalmente nada a ver com a Educated Media Foundation, tendo-se demitido dos cargos que ocupava para não prejudicar a organização, mas o seu caso parece ter sido montado com dois claros fins em vista: intimidar os jornalistas e intimidar as ONG em geral.
Perante a aproximação das eleições parlamentares em Dezembro de 2007 e das presidenciais de Março 2008, e na impossibilidade de pressionar todos os jornalistas e todos os órgãos de comunicação social da Rússia, Putin teria decidido escolher figuras dos media de visibilidade nacional para passar a mensagem de que as veleidades de independência jornalística não são bem vistas pelo Kremlin e podem ter desfechos desagradáveis. Aslamazyan seria a figura ideal, pela sua notoriedade e prestígio, para transmitir essa mensagem.
A questão das ONG é outra coisa. As ONG estão sob o fogo de Putin desde sempre e foram objecto de uma lei específica aprovada em 2005. Essa lei dá largos poderes às autoridades para restringir ou proibir a actividade de ONG que critiquem o Governo, promovam a democracia ou defendam a liberdade de imprensa.
As ONG podem também ser proibidas se ameaçarem "a soberania, a independência, a integridade territorial, a unidade nacional, a herança cultural ou os interesses nacionais da Rússia" - o que concede cobertura legal à pressão sobre as organizações críticas do poder.
O exílio de Aslamazyan - que se encontra neste momento aparentemente em Paris - arrisca-se a não ser curto, mas o seu exemplo na defesa da liberdade de expressão poderá ser o melhor ensinamento de todos os que já transmitiu a milhares de jornalistas russos.
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