por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Novembro de 2006
Crónica 40/2006
Em vez de blindar as obras, as CC permitem que o seu autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada.
A culpa, é antes de mais, da tecnologia digital. Antes do digital, cada cópia (de uma música, de um filme, de um livro) ia ficando cada vez mais ténue, mais afastada do original, cada vez com mais ruído, até se tornar pouco prática ou inútil. Não que não houvesse cópias, mas cada cópia transportava consigo uma penalização. Com o digital apareceu o paraíso da cópia igual ao original e nasceu o inferno para o copyright.
A culpa é, depois, da Internet. Com a difusão permitida pela Internet, onde todos somos editores e é fácil localizar tudo, as cópias tornaram-se banais; o acesso a material com copyright, quotidiano. Mas a Web não trouxe só a facilidade da cópia – trouxe uma maré alta de informação, de cultura, de inputs novos e constantes que veio modificar a forma como trabalhamos, como criamos, como comunicamos: a Web banalizou a reutilização da informação, sem que o quadro legal do copyright tivesse integrado esse novo paradigma.
As licenças Creative Commons, que foram ontem lançadas em Portugal, flexibilizam o conceito de copyright e vêm ajudar a ordenar um mundo onde a ilegalidade se tornou a regra.
A cópia, a reutilização, a reciclagem, o remix (como gosta de dizer o criador das Creative Commons, o jurista/filósofo/tecnólogo Lawrence Lessig) são a base da inovação e da criação na sociedade actual, mas a lei do copyright tem estado mais interessada em defender os direitos patrimoniais dos velhos autores do que em promover o aparecimento de novos criadores e de novas obras.
O problema com as leis de copyright é que elas são demasiado restritivas num mundo cuja tecnologia é muito permissiva – um mundo marcado não só pela grande rapidez nas cópias e grande fluidez na circulação de informação mas também pela possibilidade do anonimato dos utilizadores.
É esta tensão que as CC vêm resolver, de uma forma inovadora que é um ovo de Colombo: em vez de blindar as obras de autor contra o seu uso, reutilização e manipulação, as CC permitem que o autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada. E é claro que, se não quiser abdicar de direito nenhum, não tem de o fazer.
Uma das novidades das Creative Commons é que estas licenças não são uma nova lei – elas funcionam como contratos individuais, celebrados ao abrigo das leis existentes, onde cada autor define a latitude a permitir à utilização das suas obras.
Esta forma de partilha da informação e de reutilização, de remix, é usada na produção científica há séculos com excelentes resultados. Apesar de os artigos estarem protegidos por direitos de autor, no domínio da ciência considera-se que os seus dados podem (e devem) ser reutilizados por outros, que vão assim criando novas obras que vão sendo publicadas de acordo com o mesmo código de uso (e deontológico). E se alguém decidir, de repente, ganhar dinheiro com uma invenção baseada na investigação de outros, que foi difundida gratuitamente? Nesse caso, o autor da invenção deve partilhar os seus benefícios com aqueles que contribuíram para ela.
As CC não são a única experiência actual no domínio da redefinição dos direitos de autor – os movimentos de Free Software e de copyleft são os mais conhecidos – mas todas elas demonstram a necessidade e a oportunidade que a tecnologia criou de definir não apenas "novas formas de propriedade" mas novas formas de "apropriação comum" e de regular o crescente uso partilhado da informação. Estas tendências são tanto mais interessantes quanto elas vêm equilibrar novos poderes e novos quase-monopólios que a tecnologia ameaçava criar. De que forma todas estas tendências se vão articular é algo que apenas os próximos episódios dirão.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário