Texto publicado no jornal Público a 13 de Junho de 2006
Crónica 22/2006
Refrescar as ideias é algo que um cidadão sensato deve desejar que um ministro faça.
Uma semana com dois feriados à terça e à quinta é uma espécie de Veneza: vemos pontes por todo o lado.
Ou melhor: é como se toda a semana se transformasse numa espécie de imponente ponte de três arcos, saltando por cima de três rios de trabalho e sobrevoando-os a uma altitude prudente, ancorando os seus pilares na segurança dos dias de descanso.
A possibilidade de pontes, em Portugal, dá sempre origem a uma troca de tiradas moralistas onde uns criticam os maus exemplos do Governo e dos políticos, outros a falta de pendor para o trabalho demonstrada pelos portugueses em geral, enquanto outros preferem mesmo é fazer as pontes.
Ao ouvir certos discursos antipontícos dir-se-ia que a salvação para o desenvolvimento do país estaria na produção que se faria nestes dias e que essa salvação tinha acabado de ser destruída pelos feriados aziagos e pela preguiça de alguns inconscientes.
Que o Governo ou outra entidade pública decida oferecer pontes (leia-se feriados suplementares) aos seus funcionários é disparatado, pois todos eles têm já as suas férias e folgas. Mas isso não impede que um trabalhador, de acordo com as conveniências de serviço e com a sua chefia, goze um dia de folga ou de férias adiantado, de forma a conseguir umas agradáveis mini-férias. Da mesma maneira que parece absolutamente normal que um ministro aproveite um feriado para apanhar uns dias de sol e mar. Refrescar as ideias é algo que um cidadão sensato deve desejar que um ministro faça.
Seria um excelente sinal se os portugueses pudessem admitir que não há nada de pecaminoso no gozo de pontes, como não há no gozo de férias, folgas ou fins-de-semana.
As razões do subdesenvolvimento português não têm a ver com as folgas que se gozam, mas com a maneira como não se gozam, com a maneira como se trabalha. Nem têm a ver com as horas que se permanece no local de trabalho mas com o que se faz nessas horas e até nas outras – incluindo o caso dos ministros.
Se há algo que prejudica a produtividade nacional mais do que as pontes são a forma como as pontes são utilizadas pelos que ficam a trabalhar. O argumento "agora metem-se as pontes" serve para justificar todos os atrasos, tal como dentro de uns dias se usará o "agora mete-se o Verão" e umas semanas depois o "agora mete-se o Natal".
As pontes, as folgas e as férias, em Portugal, são algo que "se mete". O Natal também se mete, a Páscoa menos (é domingo), o Carnaval um bocadinho e as eleições idem (há a campanha, o rescaldo).
O calendário laboral nacional funciona de forma simétrica ao calendário turístico: há uma estação baixa, no Verão e Natal; uma estação alta, nos períodos mais distantes das férias; e uma estação média, que é aquela na qual estamos à espera que "se metam" as férias e similares.
Há quem pense que todo este aproveitamento dos pretextos para não trabalhar (e não falo dos que fazem as pontes) existe apesar da cultura das empresas – que seriam lugares de organização, brio, empenho produtivo e estimulante criatividade. Não parece que seja assim. É mais provável que o recurso a esses pretextos decorra da cultura das empresas, onde a gestão se confunde nem sequer com a burocracia mas com a pose burocrática no pior sentido do termo, a deslibidinização do trabalho se confunde com produtividade e o prazer do trabalho não se confunde com coisa nenhuma porque não se sabe que cor possa ter.
A ética do trabalho calvinista, segundo Max Weber, pregava a austeridade e acreditava que o trabalho trazia a salvação. Os portugueses, feitas as contas, sabem que as pontes são mais capazes de lhes salvar as almas que umas horas no escritório. É bem possível que tenham razão.
Sem comentários:
Enviar um comentário