Post publicado no Facebook a 1 de Junho de 2017
Gosto da irracionalidade da lotaria. Gosto do facto de a lotaria ser completamente aleatória e de não depender de qualquer razão. Se a atribuição dos prémios da lotaria fosse racional eu não teria a mínima hipótese de ganhar um prémio, porque não sou certamente nem o mais necessitado nem o mais merecedor. Mas, como a lotaria é irracional, tenho a possibilidade de ganhar, tal como qualquer outra pessoa. É a irracionalidade da lotaria que nos coloca a todos ao mesmo nível, que garante a igualdade de oportunidades que a racionalidade (invocando as melhores razões) nunca permitiria.
De facto, se houvesse critérios racionais para a atribuição destes prémios, para serem justos eles teriam de ser critérios perfeitos e de ser geridos de uma forma perfeita - o que é, na prática, impossível. Que critérios seriam esses? Quais seriam os critérios de escolha dos critérios? Como se poderia garantir a independência da sua definição e da sua gestão? Como se poderiam ter em conta os múltiplos aspectos a considerar, muitos deles provavelmente contraditórios?
A verdade é que existe uma democraticidade na cegueira do sorteio que não existe em nenhum processo racional.
O filósofo norueguês Jon Elster propôs há uns anos que a melhor solução possível para certos problemas era o sorteio. Um exemplo dado era o da tutela de crianças em casos de divórcios litigiosos entre os pais. A proposta foi recebida de início com sorrisos irónicos, mas Elster não brincava. O que acontecia, dizia, era que ou havia uma forte razão (em geral evidente) para recusar a tutela a um dos pais ou o custo da procura da solução óptima entre duas soluções igualmente boas era desmesuradamente grande, nomeadamente para o bem-estar da criança, muitas vezes entretanto retirada do convívio dos pais. Mas, como explicava Elster, temos esta maldição da racionalidade, da procura da solução óptima custe o que custar.
Na democracia ateniense alguns dos cargos políticos eram atribuídos por sorteio e este método era considerado um elemento essencial da democracia, de forma a não restringir à partida as eleições à escolha de pessoas no seio de um grupo pré-determinado por razões de poder, classe ou outra. A escolha dos júris de julgamentos é ainda feita desta forma em muitos países.
Penso que existem boas razões para não descartar à partida o papel igualitário que os sorteios podem ter nos processos de decisão, políticos e outros, associando-os aos processos tradicionais de mediação e representação.
Elster tem razão em criticar a fé absoluta na racionalidade. É por vezes pueril a fé que as sociedades modernas depositam na capacidade para encontrar as soluções óptimas para todas as questões através da razão. Uma pulsão que pode acabar por levar-nos a atitudes contrárias à própria razão.
Temos o vício do sentido, da racionalidade, da causalidade. A evolução foi moldando o nosso cérebro para procurar regras, ordem, padrões, repetições, causas e efeitos. E, por isso, tentamos encontrar sentido, um sentido humano, por todo o lado, mesmo em sítios onde não há razão nenhuma para procurar sentido. Olhamos para uma nuvem e tentamos ver caras e paisagens como se tivesse de haver caras e paisagens nas nuvens. E tentamos encontrar sentido também na vida, como se ela tivesse de ter sentido. Não nos parece plausível que a vida exista sem sentido, sem uma razão, sem uma finalidade. Achamos que temos de ser parte de um enredo, parte de uma história maior, que nos dá sentido, de que nos possamos orgulhar e, talvez, até com um final feliz. É por isso que adoptamos (muitos de nós) respostas de tipo teológico que nos aliviam momentaneamente essa angústia, nos dão a ilusão de dar sentido a uma história que não tem sentido nem tem de ter, porque nem tudo tem de ter sentido e nem tudo tem. Mas acabamos por aceitar com mais conforto o papel de personagens numa narrativa escrita por um demiurgo ex machina qualquer do que de joguetes de um destino aleatório.
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