terça-feira, abril 21, 2015

José Mariano Gago, o sonho de um país moderno

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Abril de 2015
Crónica 15/2015


Em José Mariano Gago nada era fogo-de-vista, tudo era consistente e reflectido e tudo nos solicitava a pensar e a agir.


José Mariano Gago pertencia a um grupo muito restrito de pessoas, que pode ser contado pelos dedos de uma só mão, a quem nunca ouvi fazer uma intervenção pública sem que dissessem algo substantivo e interessante, que nos obrigava a reflectir. Nunca o ouvi fazer um daqueles vácuos discursos de circunstância, cheios de pompa e de banalidades, a que os governantes habitualmente se dedicam, deliciados por serem o centro das atenções. José Mariano Gago estava na política por razões substantivas, porque tinha uma ideia para Portugal e uma estratégia para a pôr em prática, porque tinha a ambição de ajudar a construir uma sociedade europeia cosmopolita de bem-estar para todos, por paixão e por dever de cidadania, e nunca para agradar a algum poder ou servir um partido, para favorecer algum interesse particular ou para seguir um breviário. Era aí que colocava o seu orgulho, nesse trabalho que continuou a preencher até ao último dia da sua vida as páginas da sua agenda, e não nas fúteis disputas territoriais, nas prestações de vassalagem e afirmações de vaidade que são a parte central do quotidiano de tantos políticos. Essa é uma das principais diferenças entre Gago e outros governantes, conhecida ou intuída por todos, e é uma das razões do respeito que granjeou em todos os sectores da vida nacional. Em José Mariano Gago nada era fogo-de-vista, tudo era consistente e reflectido e tudo nos solicitava a pensar e a agir.

Acima de tudo, José Mariano Gago foi um político capaz de sonhar e com uma enorme ambição para o seu país. Não apenas para a ciência, de que falamos sempre quando falamos dele, mas para todos os homens e mulheres do seu país. Nunca foi um mero gestor preocupado apenas em alterar uns indicadores na folha de Excel, mas sempre um verdadeiro político e um verdadeiro democrata, preocupado com as questões essenciais, com as pessoas, com o reforço da democracia, com a promoção da cultura e da participação dos cidadãos, com um desenvolvimento justo e harmonioso de que todos pudessem beneficiar. Para ele, governar sempre foi melhorar as condições de vida das pessoas, sem fronteiras e sem barreiras de classe.

A história irá reconhecer, como os especialistas de política científica nacionais e estrangeiros reconhecem há muito, como todos nós reconhecemos, o trabalho que, sob a sua orientação (na presidência da JNICT e como ministro de quatro governos), foi realizado no crescimento e na modernização do sistema científico e tecnológico português.

Mantive com José Mariano Gago durante mais de trinta anos uma relação de amizade e, na sexta-feira, quando soube da sua morte, inesperada apesar da sua grave situação clínica, ao recordar muitas das discussões que tivemos sobre política científica, constatei com alguma surpresa que não me lembrava de uma única ocasião na qual tivéssemos estado de acordo.

Discordámos sobre a questão da reforma dos Laboratórios de Estado, sobre a criação dos Laboratórios Associados, sobre a banalização do modelo de instituições de investigação públicas de direito privado, sobre a política de emprego científico, sobre os programas mobilizadores, sobre as propinas universitárias, sobre os programas de apoio à investigação nas empresas e até, entre muitas outras, sobre a criação do próprio LIP, o laboratório que dirigia. A explicação para tanta discordância é fácil: sobre as matérias sobre as quais estávamos de acordo não discutíamos e elas constituíam uma base considerável de consenso.

Algumas das discordâncias tinham a ver com considerações tácticas. José Mariano Gago era um pragmático que gostava de escolher as suas batalhas muito selectivamente e não se lançava em guerras que considerava perdidas à partida para concentrar esforços naquilo que sabia que podia mudar (chamava-me “lírico” quando eu defendia posições mais arrojadas). Outras discordâncias eram mais profundas. Mas, apesar delas, sempre considerei evidente que as suas políticas criaram um verdadeiro sistema científico e tecnológico a partir de algo praticamente inexistente, criaram uma verdadeira comunidade científica multifacetada e vibrante, criaram uma cultura exigente de avaliação da investigação, colocaram a investigação científica na agenda política e afirmaram-na como factor de desenvolvimento económico e cultural. Isto para além de terem começado a destruir as bafientas barreiras entre “investigação fundamental” e “investigação aplicada” (que agora voltam a aparecer no discurso do governo), entre “ciências duras“ e “ciências sociais”, entre “ciência” e “cultura” e, o que não é menor, de terem promovido o ensino experimental das ciências, a cultura científica e o envolvimento da população na ciência. Não é pouco para um país que se encontrava na indigência científica há trinta anos.

Outra das fronteiras que Gago sempre se esforçou por destruir foi a barreira entre o “saber” e o “fazer”, e entre trabalho intelectual e trabalho manual, que considerava uma razão cultural central no atraso português.

Uma das vertentes mais importantes da acção de JMG em Portugal foi a internacionalização da ciência portuguesa, que seria não um simples objectivo mas um eixo central da sua estratégia. Mas não a internacionalização bacoca de que tanto ouvimos falar noutros sectores, que consiste em imitar modelos “lá de fora” para fazer as coisas cá dentro e em tentar ser “o bom aluno” que segue as orientações que vêm do estrangeiro, mas uma internacionalização adulta e responsável, que consistiu em inserir a investigação portuguesa nas redes de investigação europeia e mundial, conquistando uma participação de parte inteira nos debates e nos processos de decisão internacionais. Esta atitude de verdadeira parceria e sem complexos de inferioridade foi sempre uma marca da sua política e Portugal conquistou, em todos os fóruns onde Gago participou ao longo dos anos, uma reputação ímpar, de visão e arrojo, de competência e perseverança. Para Gago, a ciência não era apenas a investigação feita nos laboratórios, mas uma ferramenta capaz de estruturar as relações internacionais em prol do desenvolvimento e da paz, do entendimento e da inclusão, uma ferramenta de democracia - como era evidente no CERN que, com as suas equipas multinacionais, foi para ele não apenas uma escola científica mas uma escola política. As relações internacionais eram, aliás, um dos seus terrenos de predilecção e sempre o considerei um diplomata na alma, que exultava à aproximação de uma mesa de negociação. Europeísta convicto, via a União Europeia, apesar das suas insuficiências, como a mais estimulante das experiências políticas e acreditava que a ciência era uma área central na promoção da identidade e da cooperação europeia.
Diz-se sempre, quando alguém morre, que vai fazer falta e que muito havia a esperar dele. No caso de Gago é verdade. Eu esperava muito dele, até na sua velhice, quando poderia estar menos enredado pelas solicitações do quotidiano. Penso que Portugal precisava dele a trabalhar até aos 80 anos. E eu teria gostado de poder continuar a discordar dele e de o ouvir chamar-me lírico outra vez.



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