terça-feira, outubro 29, 2013

Mais pobres mas ainda à espera do dia de amanhã

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Outubro de 2013
Crónica 40/2013


Ninguém se resigna à fome dos filhos. Mesmo quem não vai às manifestações sente a mesma raiva no peito.

1. “Ficámos mais pobres” é o lugar-comum com que se reage à morte dos grandes criadores. É evidente que a morte é sempre uma perda e artistas como Lou Reed, um amigo tão próximo, que nos compreendia tão bem, que nos acompanhou em tantas viagens, que nos mostrou tantas coisas que não teríamos compreendido sem a sua ajuda, que nos levou a tantos lugares onde não teríamos ousado espreitar sem a sua ajuda, deixam um vazio que não se pode colmatar. Mas não consigo sentir a morte de Reed - e de todos os outros que nos vão morrendo - como uma perda. Nós ganhámos a vida de Lou Reed e a sua música e, podemos dizê-lo agora, foi tudo bom. Não ficámos mais pobres. Nem antes nem agora. Ele partilhou tudo connosco e ficámos mais ricos. Mais ricos, mais sabedores, mais humanos, mais felizes, mais vivos. Ele pode ter perdido a sua vida mas nós ganhámo-la. Ele ofereceu-no-la durante cinquenta anos, the good and the bad, the perfect day and the if only. Não nos ficou a dever nada e nós devemos-lhe muitas coisas.
Teríamos ficado mais pobres era se Reed tivesse preferido ser dactilógrafo em vez de músico. Quanto ao vazio que nos deixa, é sempre assim, mas não é um vazio feito de nada. Nós somos feitos destes vazios, existimos à volta destes vazios, somos tão feitos de vazios como do resto. Somos esponjas. A vida é uma esponja.

O concerto acabou. E esta é uma daquelas situações em que pedir um encore é um abuso. O homem deu tudo o que podia e mais do que devia.
2. Ficámos a saber no sábado passado, depois da manifestação “Não há becos sem saída!”, que estamos ainda mais pobres do que pensávamos. A manifestação era contra a troika, o governo, a “austeridade”, a política de empobrecimento, o aumento da desigualdade, o aumento da pobreza, o aumento do desemprego, o roubo de salários e de pensões, a queda dos salários, a destruição dos direitos laborais, a destruição da saúde, a destruição da educação, a destruição da segurança social, a destruição do património público e a venda das empresas públicas, a destruição dos transportes públicos, o exílio forçado dos jovens, a fuga fiscal das grandes empresas para os off-shores, contra a injustiça e a fome e a doença e a ignorância, contra a hipocrisia e as mentiras do governo, contra a desonestidade dos governantes, contra o ataque ao estado de direito, contra o ataque à democracia. Era de desejar que muita gente respondesse ao apelo. Sabemos que muita gente responde ao apelo na sua cabeça e no seu coração e sente na carne todas estas agressões. E, no entanto… Apesar de vivermos um dos períodos mais negros da história de Portugal, apesar de sermos governados por um governo colaboracionista que renega todas as suas promessas, todos os seus juramentos, todas as suas palavras, que despreza todos os seus compromissos com os cidadãos e o seu país em prol de uma servidão abjecta a poderes inimigos do interesse nacional, apesar disso… a manifestação não conseguiu atrair senão uns escassos milhares.

Percebe-se porquê. Não há objectivos claros para além do protesto, não há alternativas governativas à vista e aquelas que espreitam a sua oportunidade são quase tão preocupantes como a aventesma que ocupa S. Bento, não há lideranças mobilizadoras. As pessoas estão cansadas e desanimadas, outras têm medo de perder o pouco que têm, outras acham que a rua não consegue mudar nada, outros já saíram do país e outros estão na lista de espera. Seja qual for a razão, esta jornada de protesto ficou tão aquém do que seria justo que constituiu uma vitória do Governo. Por enquanto, o Governo está a ganhar ao povo.

É verdade que a força está do seu lado, que a maioria de carneiros que faz de deputados da nação no Parlamento cumpre com um surpreendente zelo canino as ordens da voz do dono, que não há escrúpulos nos ministérios, que a campanha de desinformação da direita continua a ser repetida pelas televisões como se tratasse do Evangelho, mas poder-se-ia esperar que ainda houvesse algum fogo, que houvesse um peito ilustre lusitano, que a dignidade alimentasse a justa indignação e que pudéssemos ter na rua a maré e o grito que a situação exige. Não tivemos. Estamos mais pobres do que pensávamos.

O governo, enquanto roubava subsídios e salários e pensões e serviços sociais ao povo, foi-lhe roubando também a alma. As pessoas sentem-se tristes e cansadas. Outras têm demasiada vergonha ou demasiado nojo para sair à rua. Há substâncias nas quais nem com um pau gostamos de tocar e o governo é uma delas.

Mas atenção: ninguém está resignado. Ninguém se resigna à fome dos filhos. As pessoas esperam. Milhares e milhares que não estiveram na manif, talvez milhões, sentem a mesma raiva no peito. O governo está a conseguir encurralar as pessoas, a condená-las ao desemprego e à pobreza, mas ninguém desistiu. A fome e a humilhação não convidam à resignação e, um dia, há camisas rasgadas que se transformam em bandeiras. É um slogan? Um verso de um poema? É. Mas é também verdade. A história está cheia de exemplos. Não há nada tão mobilizador como um verso. (jvmalheiros@gmail.com)

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