por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Agosto de 2008
Crónica xxx/2008
Os cidadãos reagem à norma pública exactamente com o mesmo respeito que a norma pública manifesta por eles
Numa das ruas que atravesso a pé nos meus trajectos diários apareceu há tempos uma passadeira pintada de fresco. A passadeira era uma zebra daquelas onde não há semáforo e onde não há dúvidas quanto a quem tem prioridade: são mesmo os peões.
Aconteceu que a passadeira foi pintada de fresco e os carros começaram a parar para os peões passarem.
Não era aquele habitual abrandar envergonhado para não dar parte de fraco enquanto os peões correm para se pôr a salvo. Os carros paravam mesmo e os peões passavam. Era prático.
À medida que o tempo passava, a tinta foi enegrecendo, o contraste foi-se tornando menos nítido entre as riscas brancas e pretas da zebra e aconteceu o inevitável. A lógica binária induzida pela passadeira pintada de fresco (pára, anda) foi substituída por uma lógica fuzzy (abranda às vezes; nem abranda; deixa passar um, mas não dois; as mulheres sim, os homens não) que traduzia em termos normativos os graus de cinzento do asfalto manchado.
Há muitas interpretações para o facto. Pode-se pensar que os carros deixaram de obedecer à passadeira em virtude daquilo que os americanos chamam plausible deniability. ("Passadeira? Qual passadeira? Eu vi umas marcas muito sumidas, mas pensava que fossem de uma passadeira antiga que já nem existisse"). Pode-se pensar que alguns dos automobilistas não vejam mesmo as marcas (é por isso que a deniability é plausible). E pode-se pensar que outros não queiram ser alvo da chacota dos seus colegas automobilistas se pararem ("Tás a parar na passadeira, ó betinho? Pensas que tás na Suíça? Não tás a ver cas marcas tão tão sumidas quisto dá plausible deniability? Anda mazé pá frente, ó tótó!..."), numa situação a que se poderia dar o nome de cascading plausible deniability ou plausible deniability chain reaction (ou também incivilidade viral).
Mas a minha teoria é outra. Penso que a razão por que as pessoas param numa passadeira bem pintada mas não numa passadeira suja e sumida não é porque no segundo caso se possam safar facilmente sem sanção, mas sim porque reagem à norma pública exactamente com o mesmo respeito que essa norma pública manifesta por eles. A atitude não será desculpável, mas é compreensível e mesmo defensável.
No fundo, é a mesma razão que faz com que, numa praia cheia de lixo, um veraneante não se importe de atirar a lata vazia de cerveja para o areal e numa outra praia imaculada, onde seja evidente o cuidado posto na sua limpeza, faça cem metros ao sol para ir buscar uma lata de cerveja vazia para servir de cinzeiro. O campo colhe o que semeia e a cidade também. E as passadeiras sumidas e sujas semeiam automobilistas que não respeitam peões.
A mensagem subliminar da passadeira sumida é que, de facto, o seu papel não é muito importante, que a regra que ela pretensamente impõe não é respeitável, que ela não é levada a sério por ninguém e que ninguém se importará muito se ela não for respeitada. Uma sociedade democrática rege-se por regras consensualmente impostas para benefício de todos, mas para isso é fundamental que o princípio de equidade seja respeitado. Eu só respeitarei uma regra se ela for respeitada por todos, só pararei na passadeira se todos pararem, só pagarei impostos se eles forem pagos por todos, etc.
A passadeira sumida declara que quem a pintou não acata a disciplina que exige de mim ou, alternativamente, declara que, na realidade, não exige disciplina de ninguém.
Não sei se o homem é naturalmente bom ou naturalmente mau (tendo a pensar que é naturalmente assim-assim) mas tenho a certeza de uma coisa: se houvesse mais passadeiras bem pintadas, seria melhor do que é. Jornalista
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