terça-feira, maio 07, 2013

Paulo Portas do outro lado do espelho (e aqui deste lado também)

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Maio de 2013
Crónica 17/2013

O presidente do CDS faz o seu número no arame e os estudantes do Porto fazem a sua Queima das Fitas

1. O último discurso de Paulo Portas foi um prodígio. Prodígio no sentido maravilhoso da palavra, porque nos mostrou algo de que já tínhamos ouvido falar mas que não sabíamos ao certo se existia e que nos causou aquele misto de espanto e de terror de que se fala nas lendas. Numa única intervenção, Paulo Portas conseguiu ser ministro da coligação mas presidente do CDS, Governo mas oposição, troikista mas patriota, estadista mas Paulinho das feiras, austeritário mas desenvolvimentista, falar para dentro e para fora do partido, para dentro e para fora do país, reforçar a sua posição neste Governo e preparar o seu papel no próximo, elogiar Pedro Passos Coelho e mostrar-lhe que segura o único fio que o segura, ser sensato mas ameaçador, firme mas negociador, cortês mas feroz, tudo sem piscar um olho e quase sem um tremor de voz.

Mas Paulo Portas não nos mostrou apenas que sabe jogar com virtuosismo em vários tabuleiros. O discurso mostrou-nos que já estamos todos a viver num país do outro lado do espelho, onde Paulo Portas é o principal autor dos cortes mas recusa partes essenciais dessas medidas, onde Portas diz que a troika é indispensável mas recusa o seu protectorado humilhante, onde Portas é Pétain e de Gaulle ao mesmo tempo e sem mudar de chapéu.

Portas lembrou-me aquela velha pergunta de algibeira: se um homem dorme com outra mulher e depois conta tudo à legítima, está a enganá-la ou não?

2. Na madrugada do último sábado, quatro homens encapuçados e armados com caçadeiras assaltaram as bilheteiras da Queima das Fitas da Universidade do Porto. A imprensa não dá pormenores sobre o assalto, que foi filmado por câmaras de videovigilância e que ocorreu durante a operação de contagem do dinheiro, mas conhecemos o trágico desenlace: um jovem envolvido na organização, Marlon Correia, estudante finalista da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, de 24 anos, foi morto com dois tiros nas costas por um dos assaltantes, que também feriram a tiro, mas sem gravidade, dois guardas da empresa de segurança ao serviço da Queima das Fitas.

A notícia saiu nos telejornais, com as inevitáveis declarações de estudantes encapados manifestando a sua consternação por um episódio como este ter vindo perturbar o seu festival de bebedeira non-stop. Passadas umas horas, a direcção da Federação Académica do Porto (FAP), lamentando a tragédia ocorrida, anunciava que o programa da Queima prosseguiria como previsto, mantendo as “actividades académicas” programadas e garantia que o estudante morto seria homenageado no decurso das festividades.

A decisão seguia o tom desprendido dos comentários de estudantes que vi na televisão, que manifestavam o sentimento de que a vida continua e que é chato este azar mas a Queima é a Queima. O drama não pareceu ter avivado aquele humano sentimento perante a morte - e, em particular, perante a morte inesperada e violenta de um jovem - que nos faz ganhar consciência da fragilidade da vida e da urgente necessidade de a viver bem, que nos faz querer aproximarmo-nos dos outros e valorizar o que é importante. A morte de Marlon Correia foi apenas um contratempo na organização da Queima que foi preciso gerir para não permitir que ele deixasse marcas na memória de mais uma grande festa “académica”.

Numa declaração ao Jornal de Notícias, o presidente da FAP, Ruben Alves, considerou que se poderia “elaborar algumas teorias” sobre este tipo de actos resultar da actual “conjuntura difícil” mas não retirava daqui mais consequências senão que a “Queima” deste ano iria honrar a memória do estudante morto sem alterar os horários.
Não sei se o assalto resultou da actual “conjuntura difícil”. Do que não tenho dúvida é de que a chocante posição da Federação Académica do Porto e da Associação Académida da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto resulta, ela sim, desta “conjuntura difícil”, que está longe de ser apenas conjuntural, e não é alheia a uma desvalorização da vida, das pessoas, da solidariedade e dos sentimentos em geral que constitui o cerne da filosofia neoliberal que nos governa. Cortar a pensão de uns velhos doentes ou condenar trabalhadores à pobreza é tão fácil como ir festejar para o local de um assassinato quando o sangue ainda não secou no chão. São pessoas que não conhecemos, por quem não conseguimos sentir nada de especial. Não nos tocam. Não somos nós.


A filosofia “the show must go on” da organizaçao da Queima não se deve aqui a um dever de engolir as lágrimas e fazer das tripas coração para não defraudar quem tem direito à ilusão que lhe garante uns momentos de felicidade, como vemos no exigente código dos profissionais do espectáculo. Não há aqui nenhuma abnegação. Há precisamente o contrário: a total ausência de disponibilidade para a compaixão. Apenas egoísmo. Os estudantes não quiseram prescindir da festa. Não perceberam sequer por que o deveriam fazer. Que valores festeja esta academia? (jvmalheiros@gmail.com)

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