terça-feira, janeiro 22, 2013

Valsa macabra no salão dos espelhos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Janeiro de 2013
Crónica 3/2013


Uma discussão de dois dias, à porta fechada, com acesso por convite e uma imprensa submetida a exame prévio

Começou por ser a “refundação do memorando de entendimento”. A expressão não quer dizer absolutamente nada (não se refunda um documento) mas foi lançada pelo primeiro-ministro num discurso partidário e corresponde ao perfil do sujeito: letras escassas, empenho em utilizar expressões pomposas que possam dar aparência de profundidade de pensamento e uma predilecção por frases que permitam diferentes interpretações para defesa futura, enunciadas com uns maxilares tão cerrados que receio que comecem a causar-lhe problemas nos molares. O mundo político e a sociedade em geral lançou-se em peso na exegese do discurso petropassicunículo e concluiu que a) o homem queria dizer “refundação do Estado” mas não lhe tinha chegado a língua b) o homem queria dizer “refundação do Estado” mas queria poder dizer que não tinha dito c) o homem queria dizer “reforma do Estado” mas achou que isso não lhe dava um ar de estadista porque os estadistas são gajos que fundam e refundam e não apenas gajos que reformam d) o homem queria mesmo dizer “refundação do memorando” e só ele e Deus Nosso Senhor sabiam o que isso queria dizer.


A expressão não merecia o esforço de análise. O que PPC queria dizer, como aliás era claro no mesmo discurso, era cortar drasticamente os gastos do Estado, sem olhar a meios, custe o que custar, mas apenas nas áreas sociais e nunca nos benefícios dados ao 1% do topo, para agradar aos credores e eternizar a dependência de Portugal em relação ao sistema financeiro. Considerando PPC que o Memorando de Entendimento assinado com a troika de credores é a Nova Constituição do Novo Estado, foi natural a confusão entre “memorando” e “Estado”. A intenção de PPC era deixar bem claro que não pretendia em caso algum discutir ou renegociar o memorando mas sim reforçá-lo, aumentá-lo, eternizá-lo. “Refundação” foi a palavra que lhe pareceu mais patrícia, depois de ter considerado “aprofundação” e “reforcionamento”, sobre as quais teve dúvidas que o Google não conseguiu esclarecer.


Rapidamente, porém, a “refundação do memorando” passou a “reforma do Estado” e “reforma do Estado Social”, sendo prometido que haveria sobre esta questão um amplo debate nacional, envolvendo toda a sociedade, sem ideias preconcebidas, onde todas as sugestões seriam bem-vindas, com total transparência e participação dos cidadãos, de forma a construir um amplo consenso nacional.


E foi exactamente assim que o Governo fez, cumprindo escrupulosamente as promessas repetidas pelo PM e pelos dirigentes da maioria, através de uma reunião organizada no Palácio Foz por uma ex-dirigente do PSD (o facto de se tratar de uma dirigente “ex” é, em si, prova da independência de todo o processo).


As únicas diferenças consistiram no facto de a) não ter havido tempo para um debate amplo porque era preciso acabar a discussão em Fevereiro, que está aí à porta b) não ter havido possibilidade de um debate nacional, que seria demasiado complicado organizar atendendo ao pouco tempo disponível e c) não ter havido tempo para debate porque um debate demora imenso tempo e nunca se sabe o que é que vai dar.


Mas, pelo menos, o amplo debate nacional envolveu uma parte da sociedade civil, tendo sido convidadas algumas dezenas de pessoas amigas do Governo para ir debater as ideias do Governo segundo as regras definidas pelo Governo.


Quanto a ideias preconcebidas o debate esteve delas totalmente isento, com a excepção da conclusão que era preciso encolher o Estado e pô-lo ao serviço do serviço da dívida  e cortar desde já 4.000 milhões de euros na despesa - mas aqui tratou-se de mero realismo.
Pelo menos, a reunião esteve aberta a todas as correntes de opinião, excepto aquelas que, por se situarem fora da esfera de influência dos actuais dirigentes do PSD, não valia a pena considerar. A reunião era aliás totalmente aberta a quem quisesse participar, desde que tivesse sido previamente convidado pela organização.


A transparência foi outra característica deste amplo debate nacional, se exceptuarmos o facto de a imprensa ter sido impedida de o relatar livremente, de não ter havido a transmissão directa das discussões que já se tornou habitual nas reuniões académicas e políticas e do facto de ter sido imposta unilateralmente uma regra que efectivamente impôs o exame prévio à imprensa. 


(Mensagem privada para enviar pelo Facebook esta noite: “Cara Sofia Galvão: A Chatham House Rule pode ser usada em certas circunstâncias, mas não nestas. Nem tudo é matéria de amimparecemq, sei lá. Há coisas que é conveniente saber. Cumprimentos. jvm”)
Ainda que pouco se saiba do que lá se passou, sabemos que o evento foi um êxito. Carlos Moedas apareceu repetidamente na televisão, resplandescente no meio nos dourados e dos espelhos. Pedro Passos Coelho e o próprio Moedas foram filmados e citados, tudo sempre com a devida autorização prévia. Estava tudo lindíssimo e eles estavam ambos elegantíssimos. Naquele décor setecentista, lembraram-me imenso a Maria Antonieta, com o seu fatinho de pastora. (jvmalheiros@gmail.com)

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