por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Outubro de 2012
Crónica 41/2012
Não há nenhuma moral onde o pagamento de dívidas se sobreponha a todos os outros deveres
1. Mesmo que se aceite que a dívida pública é aquela que nos dizem e que toda ela é legal e legítima - o que está longe de estar demonstrado - o seu pagamento representa apenas uma obrigação entre as muitas obrigações do Estado. A escolha que o actual Governo faz, de sobrepor o pagamento da dívida a todas as suas outras obrigações - garantir mínimos de protecção social a pessoas em situação de extrema fragilidade, conservar para as gerações futuras o património público de que é fiel depositário, respeitar a Constituição que jurou defender - é uma escolha ideológica, que sobrepõe os desejos de uns poucos aos direitos da maioria.
Esta escolha, plasmada no Orçamento ontem apresentado pelo Governo, pode ser criticada em termos económicos, porque está a destruir a estrutura produtiva do país e porque desperdiça competências e talentos em cuja formação a comunidade investiu fortemente na última geração. Pode ser criticada em termos políticos, porque está a destruir a confiança na democracia. Pode ser criticada do ponto de vista da sua legitimidade democrática, pois esta política nunca foi sufragada. Pode ser criticada em termos jurídicos, porque esta política faz tábua rasa de leis fundamentais da República. Mas, para além de todas as outras críticas possíveis, e acima de tudo, ela é moralmente inadmissível.
Ela reflecte uma escolha onde o Governo reconhece os direitos dos mais fortes mas ignora os direitos dos mais fracos, onde o Governo prefere alimentar os privilégios dos poderosos em vez de defender os direitos dos desmunidos.
Apresentar esta política como não tendo alternativas é falacioso. Ela não tem alternativas quando se admite como mandamento divino os lucros dos credores e como valor negligenciável as vidas das pessoas. As alternativas têm aparecido às dezenas e recolhem cada dia mais adeptos. E pretender apresentar esta política como sendo motivada por um justo desejo de honrar um compromisso é algo que mina a própria ideia de moral. Não é apenas a economia ou a democracia que está a receber um golpe mortal, é a própria ideia do bem que é violada e arrastada pela rua em farrapos.
Não há nenhuma filosofia moral onde o pagamento de dívidas se sobreponha a todos os outros deveres. Seria admissível que, em nome da defesa do nome da família, um pai deixasse de alimentar os filhos para pagar a dívida de jogo do tio aldrabão?
A história está cheia de massacres cometidos em nome da pureza e do progresso. As atrocidades foram sempre defendidas como indispensáveis para obter o progresso desejado. Não havia alternativa. Era preciso levá-las a cabo custasse o que custasse. Por muito sofrimento que implicassem. Reconhecem as palavras? Esta filosofia, onde os fins justificam os meios, encheu a história de cadáveres e mutilados. Mas é a filosofia que o Governo defende. Custe o que custar. E se custar o sofrimento de muita gente? O fim justifica o sofrimento. É uma operação higiénica. Temos de cortar as gorduras, acabar com as pieguices, pôr fim aos parasitas, limpar a sociedade. Reconhecem as palavras? São as palavras que os deputados da maioria vão aprovar. São as palavras que justificam o massacre que se vai seguir.
2. Não é fácil para mim falar do Público, o jornal onde sou hoje cronista convidado, mas que ajudei a fundar, onde trabalhei diariamente durante vinte anos e onde vivi alguns dos momentos mais exaltantes e mais felizes da minha vida. No entanto, é preciso hoje falar do Público.
O Público enfrenta uma situação financeira muito difícil, que não é de agora mas se agravou com a crise actual, e anunciou cortes de pessoal que a administração e a direcção consideram indispensáveis para o jornal poder sobreviver. A questão é que, se o funcionamento do jornal já se ressentia de uma redacção reduzida e de um orçamento de funcionamento escasso, dificilmente poderá manter o nível de actividade que mantinha até aqui, em qualidade e âmbito, se esses cortes (e talvez outros) se efectivarem. Tudo isto seria um mero incidente se não se desse o caso de muitos milhares de cidadãos - e não apenas os leitores fiéis - considerarem o Público, com todas as suas falhas e insuficiências, com todos os seus deslizes e apesar dos desgostos que já nos causou, um jornal essencial à democracia em Portugal. Num momento como este, onde se vive uma crise política, financeira e moral, onde a democracia está ameaçada pela redução do leque de escolhas que nos colocam à frente dos olhos, o país não pode ver igualmente reduzida a sua oferta de informação e de opinião e não deve ver reduzida a já escassíssima actividade de fiscalização dos poderes que os media levam, apesar de tudo, a cabo.
Penso que este é o momento em que todos os que reconhecem a necessidade de um Público que corresponda ao melhor da sua tradição devem fazer ouvir a sua voz e, com imaginação, tentar participar na descoberta de soluções. Não é fácil, mas é indispensável. (jvmalheiros@gmail.com)
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