terça-feira, agosto 07, 2012

A dignidade não é sustentável?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Agosto de 2012
Crónica 31/2012

Será que a revolução neoliberal em curso tem plena consciência dos valores que está a pregar?

1. Ficámos a saber há dias que Miguel Pais do Amaral, presidente da Media Capital, dona da TVI, é a pessoa que ocupa mais lugares em conselhos de administração de empresas portuguesas: Pais do Amaral administra nada menos de 73 empresas (segundo dados da CMVM relativos ao final de 2010) e isto sem contar as empresas estrangeiras onde ocupa os mesmos cargos, nomeadamente em Angola e no Brasil. Se se incluírem também estas, Pais do Amaral terá assento em mais de cem conselhos de administração. E isto, note-se, apenas em conselhos de administração, sem considerar quaisquer outras funções e actividades.

O facto foi uma surpresa para o próprio que, segundo as suas declarações aos media, confessou achar "até alguma piada" ao facto de ser recordista da modalidade. E, quando lhe perguntaram como conseguia gerir tantas empresas ao mesmo tempo, Pais do Amaral explicou que "muitas dessas empresas têm conselhos de administração que não reúnem ou reúnem semestralmente", acrescentando a seguir que não considerava que essa fosse "uma questão muito relevante", sinalizando desta forma aos jornalistas que preferia que eles não insistissem neste tema delicado.

Que uma pessoa não consegue gerir cem empresas ao mesmo tempo, dedicando a cada uma delas a atenção que as regras prudenciais recomendam, é evidente. Mas todos sabemos que as regras não são iguais para todos e, se há empresas privadas que entendem convidar Pais do Amaral para os seus conselhos de administração mesmo sabendo que ele não lhes poderá dedicar senão alguns minutos de atenção por ano e se o próprio entende que deve aceitar esses convites, apenas podemos espantar-nos com a generosidade dos primeiros e a vaidade do segundo. Mas porque se inclui num conselho de administração alguém que, manifestamente, não terá tempo para levar a cabo esse trabalho? É possível que, nalguns casos, Pais do Amaral apenas esteja a servir de jarra (o que se pode considerar uma função em si) mas penso que noutros casos a sua inclusão nem sequer tem esse objectivo. É que "pôr" Pais do Amaral num conselho de administração parece simplesmente algo "natural", um privilégio de casta que nada tem a ver com eventuais competências, com real disponibilidade ou com qualquer expectativa de trabalho por parte da organização. Trata-se, antes de mais, de uma questão de estatuto: Pais do Amaral pertence à categoria dos administradores, faça o que fizer ou mesmo que não faça nada, como outros pertencem à categoria dos desempregados ou dos quinhenteuristas, ainda que sejam brilhantes, criativos, trabalhadores e doutorados. É isso que quer dizer uma sociedade de castas e é nisso que a sociedade portuguesa se está a transformar a passos largos, regressando à estratificação típica do Estado Novo.

2. Também nos últimos dias, ficámos a saber em que consistiam as medidas de apoio ao emprego jovem incluídas no programa Impulso Jovem, criado pelo Governo. Essas medidas consistem em subsídios dados às empresas que empreguem jovens desempregados há mais de um ano e com menos de 30 anos de idade. Os subsídios (que têm a forma de reembolsos de uma percentagem da Taxa Social Única) são pagos durante os primeiros 18 meses de vigência dos contratos de trabalho, sendo os benefícios máximos para salários até aos 980 euros (para contratos a prazo) e até aos 735 euros (para contratos sem termo). O que este sistema de incentivos diz às empresas é simples: contratem jovens até aos 30 anos, contratem-nos por prazos não superiores a 18 meses, paguem-lhes salários baixos, de forma a maximizar os vossos reembolsos de TSU. E, naturalmente, este incentivo à precariedade e aos baixos salários é financiado pelos nossos impostos.


Se fosse preciso uma admissão do desejo do Governo de aumento da desigualdade e de degradação dos salários, ela não poderia ser mais clara. E é claro que isso é feito em nome da promoção da competitividade e apresentado com a desvergonha habitual como sendo uma medida de promoção do emprego. Percebe-se: estes jovens desempregados não se chamam Pais do Amaral. São cidadãos de outra categoria.


3- O discurso de defesa da desigualdade crescente - que já não é apresentada como um flagelo a combater mas como uma infeliz inevitabilidade, quando não como uma ferramenta da promoção da competitividade internacional - é, aliás, cada vez menos eufemístico. Num dos últimos programas da Quadratura do Círculo, o advogado António Lobo Xavier levava a desfaçatez ao ponto de declarar que a redução das desigualdades sociais não era "sustentável" (repare-se na apropriação do léxico politicamente correcto, como um dedinho piroso espetado ao pegar na chávena de chá) e dizia que a relativa redução das desigualdades durante dois anos dos governos Sócrates teriam provado isso mesmo, pelo descalabro financeiro que teriam provocado. O mantra da direita caceteira que temos no poder é "gostávamos de combater as desigualdades, mas não temos dinheiro para isso", da mesma forma que Paulo Macedo diz que a única forma de defender o Serviço Nacional de Saúde é destruí-lo e que Mota Soares diz que a única forma de defender o Estado Social é acabar com ele. Os indicadores da desigualdade enchem todos os dias as páginas dos jornais: há 463 mil desempregados sem qualquer tipo de apoio, há 40 mil idosos em Lisboa que deixaram de ter dinheiro para comprar passe, os escândalos tornaram-se estatística quotidiana. O discurso político demoniza estes miseráveis, humilhados e ofendidos. São o peso-morto que o Estado não pode suportar, que nos "puxam para baixo". Era bom se os pudéssemos ajudar mas não temos meios. É pena, mas vamos ter de os deixar morrer. Todo o dinheiro que temos é para pagar aos banksters, a esses não podemos deixar de pagar, custe o que custar. O dinheiro que temos é para tapar o buraco que os amigos de Cavaco deixaram no BPN e o que sobrar é para subsidiar a compra do BPN pelos angolanos. Não temos dinheiro para mais. Não temos dinheiro para ser solidários, não temos dinheiro para ser humanos. E aliás as pessoas já estão a habituar-se. Para Pais do Amaral seria um choque deixar de ter dinheiro para comer, seria impensável, sorrimos perante a simples ideia, mas é uma pessoa de outra qualidade. Esta gente está habituada. A humanidade não é sustentável, a dignidade não é sustentável. É isso que a direita teima em nos ensinar: a humanidade não é uma opção política. Será que eles sabem mesmo o que nos estão a dizer? (jvmalheiros@gmail.com)

2 comentários:

Anónimo disse...

Quem reitera que a dignidade não é sustentável ou é ignorante ou não reconhece os outros como seres respeitáveis.

Diana disse...

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