por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Dezembro de 2011
Crónica 49/2011
Mobilizar as pessoas é a única forma de garantir que se trabalha bem, que se trabalha mais, que se atingem objectivos, que se produzem as melhores ideias
A esmagadora maioria das coisas que dizemos que “só acontecem em Portugal” acontecem de facto por todo o mundo. Gostamos de pensar e de dizer que só em Portugal é que se vê uma capital com tantos buracos nas ruas ou que só cá é que se vê tantos políticos a passar da pobreza remediada para a opulência lamborghínica no tempo de uma legislatura, mas não é verdade. Há muitos outros países onde isso acontece. Não estão é na nossa lista de referências, o que é saudável.
Posto isto, é certo que há costumes e atitudes que me parecem tipicamente portugueses (ainda que talvez não o sejam).
À frente na minha lista está o hábito de pedir desculpa às visitas por a casa estar “tão desarrumada” – uma prática que nunca encontrei em nenhum outro país.
A verdade é que os desarrumados estrangeiros se estão borrifando para o facto e para o julgamento que as visitas possam fazer, enquanto nós receamos que elas pensem que somos desleixados ou – supremo pavor – que somos pobres, que nos habituámos a ter tudo assim desarrumado lá na barraca e que ainda não conseguimos adoptar o exigente protocolo de lida caseira da pequena burguesia onde acabámos de ascender.
Logo a seguir na minha lista está “dizer mal dos empregos”. Mais uma vez, não é que isso não aconteça noutros países. Mas entre nós é um desporto nacional de prática diária, uma espécie de jogging de salão. É como discutir cozinha durante o jantar: basta que alguém lance um comentário, para a discussão se generalizar com entusiasmo, com histórias que se encavalitam umas nas outras, com cada conviva a tentar (e a conseguir) suplantar o interlocutor (“oh, isso não é nada comparado com o que me disse o director do departamento quando...”). Muitas destas histórias pertencem à categoria “o meu chefe é tão estúpido, tão estúpido, tão estúpido que”, mas são mais frequentes críticas estruturais à ausência de estratégia, ao desperdício de talentos, à gestão irracional de recursos humanos, à inútil conflitualidade, à ausência de liberdade, à falta de informação e discussão, à corrupção e ao nepotismo, etc.
Pela amostra das minhas relações pessoais, Portugal é um país com uma muito baixa satisfação com o trabalho que se faz e as condições em que ele se faz. E, como confio na sensatez de muitas destas pessoas, que fazem parte do meu círculo de amigos e conhecidos, fico convencido de que predominam entre nós os chefes incompetentes, as organizações sem estratégia e as empresas esclavagistas. Os portugueses estão infelizes com os seus empregos porque muitos deles são não só melhores do que os seus chefes como são melhores do que os seus empregos. Os seus empregos não os merecem e eles não merecem aqueles empregos.
Mesmo nas actividades intelectuais, vemos dirigentes que se comportam como capatazes, capazes de fiscalizar horários e regras mas incapazes de suscitar ideias e de coordenar equipas, capazes de controlar um orçamento mas incapazes de mobilizar as pessoas. E, no entanto, mobilizar as pessoas é a única forma de garantir que se trabalha bem, que se trabalha mais, que se atingem objectivos, que se produzem as melhores ideias, que todas as pessoas contribuem com o seu melhor e que vivem mais felizes.
Pode-se perguntar (ouço uma vozinha liberal esganiçada no ouvido) por que não criam estas pessoas os seus empregos? Por que não se tornam empresários? Respondo, com paciência, à vozinha esganiçada: nem toda a gente quer ou pode fazê-lo, nem deve ser o objectivo do país ter cinco milhões de empresas unipessoais.
Vem isto a propósito da ideia peregrina da meia hora de trabalho suplementar e do fim dos feriados, que o Governo imagina que vai contribuir para resolver os nossos problemas de produtividade. Não vai.
Não há nenhuma forma de aumentar a produtividade de forma sensível e sustentável que não passe pela mobilização dos trabalhadores e pela sua inclusão no processo de tomada de decisão nas organizações. Adoptar uma pose de capataz de fábrica do século XIX e obrigar as pessoas a ficar mais meia-hora sentadas à secretária ou na cadeia de montagem não vai aumentar a produtividade – e até a pode baixar, pois a produção arrisca-se a ser a mesma.
Este tipo de medidas paternalistas, onde os trabalhadores são vistos não como o principal capital das empresas mas como adolescentes relapsos que é preciso disciplinar (como o inimigo, de facto), não só não respondem às necessidades actuais como aumentam a conflitualidade nas empresas e agudizam tensões que o Governo e os empresários deveriam estar interessados em evitar.
O Governo faria muito mais pela produtividade nacional tentando promover um ambiente de boa convivência laboral e apostando na inovação (eu sei que fazem discursos, mas estou a falar de outras coisas) do que propagandeando a ideia de que os trabalhadores portugueses são uns calões, que aproveitam todas as oportunidades para não trabalhar e que é necessário amarrá-los às bancadas através de meios legais como a extinção de feriados e a extensão de horários de trabalho.
A insatisfação generalizada suscitada por estas medidas e por esta cultura de suspeição e de confronto cria o tipo de ambiente que eu, se fosse empresário, sei que não quereria na minha empresa.
Os trabalhadores são um recurso demasiado importante para não investir neles. E o investimento em formação, em diálogo, em participação nas decisões, em confiança, em satisfação, é sempre rentável. Porque é que o investimento é algo tão fácil de perceber para um patrão quando se trata de dinheiro e tão difícil de explicar quando se trata de pessoas? (jvmalheiros@gmail.com)
2 comentários:
Temos o síndrome saudosistas, seja em que área for. Mas não vejo as coisas como defeitos ou virtudes: são características.
No Brasil, também existe essa preocupação com a aparência (de uma casa, por exemplo), que as pessoas expressam exatamente como em Portugal. Também lá se pede desculpa pela desarrumação, tem até letra de música do Chico Buarque com esse detalhe (Suburbano coração, se não me engano). Mas o curioso é que, em seguida ao pedido de desculpas, pode vir outro comentário, mais ou menos assim: "- Eu sou pobre, mas sou limpinha". Isso para dizer que mesmo que a aparência da casa não tenha qualquer traço das casas fotografas para as revistas da moda, por hipótese, essa casa é limpa, pois gente pobre preza a limpeza. Acho eu que pode ser uma forma de diminuir esse peso que damos à aparência e esse medo de ser pobre. É uma confissão, com riso nos lábios, de que a condição social não permite ter empregada doméstica, mas resta o orgulho de saber fazer, de saber cuidar. Os portugueses, penso eu, igualmente sabem cuidar, mas só puxam esse argumento em outras horas... não me parece algo que se deva declarar a uma visita, quando ela vem à casa...
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