Texto publicado no jornal Público a 15 de Março de 2011
Crónica 11/2011
Aquilo que começou como um movimento de trabalhadores precários começa a parecer-se com um Tea Party
As manifestações de sábado foram enormes. Muito maiores do que se esperava – atendendo à fragilidade dos meios dos organizadores e à indefinição dos seus objectivos. Mas mostraram o descontentamento das pessoas com a situação económica, com o desempenho do Governo, com os políticos em geral, com a precariedade do emprego, com a falta de perspectivas. O descontentamento das pessoas em geral e não apenas dos jovens. Se a manifestação mostrou que é possível pôr centenas de milhares na rua usando uma página da Facebook, também mostrou que o descontentamento excede a camada jovem com empregos precários e abrange toda a população. Os jovens não estão mais à rasca que os outros. O seu desespero pode ser mais chocante, mas de facto eles não estão mais à rasca que os dois milhões de pensionistas a quem o Governo acaba de congelar as pensões. Nem que os dez milhões que viram os seus impostos agravados, os seus salários encolhidos, os apoios sociais reduzidos, as isenções fiscais reduzidas. Nem que os inquilinos que vão ver as suas rendas aumentadas, que os desempregados que vão ver os seus subsídios encurtados, que os doentes que vão ter de pagar mais pelos medicamentos, que os deficientes que vão ver os seus apoios desaparecer, que os empregados que acabarão no desemprego.
A manifestação também mostrou que, se está toda a gente descontente, ninguém faz a mínima ideia do que fazer com esse descontentamento. Dispensar os políticos foi uma das ideias que pareceu ter mais adesão, mas ninguém tem grandes dúvidas de que a ideia é insuficiente como estratégia de organização social ou como segredo de geração de bem-estar. E por muito que se grite contra a precariedade todos sabem que ela não acaba por decreto. A pergunta que todos fizeram e ainda fazem – incluindo os organizadores da manifestação - foi o conhecido “O que farei com estes manifestantes?” que vem dar voz à mesma angústia com que Manuel Alegre primeiro e Fernando Nobre depois perguntaram “O que farei com estes votos?”. Há uma resposta honesta: ninguém faz a mínima ideia. Por um lado, ninguém sabe se há algo de comum naquilo que toda esta gente quer. Depois, ninguém sabe se o que a maior parte desta gente quer é uma política possível ou apenas uma fantasia. Finalmente, ninguém sabe se o desagrado com a situação é um sentimento mobilizador ou um arrufo que se desvanecerá nas próximas eleições.
A criação de um fórum para recolher ideias “para produzir mudanças” parece uma boa ideia, mas é espantosa a ingenuidade de algumas das ideias (hortas comunitárias? PME?), ao mesmo tempo que outras tresandam a puro fascismo (fim dos políticos e dos partidos?) ou ao neoliberalismo que está na origem da hecatombe financeira actual (fim das empresas públicas? o Estado só serve para sugar os trabalhadores?). Para algo que se apresenta como uma consciência crítica, o movimento revela uma atitude singularmente acrítica em relação ao funcionamento do capital, dos mercados financeiros e das empresas em geral. E a defesa dos trabalhadores aparece mais associada a ataques aos políticos e ao Estado que a críticas aos patrões. Aquilo que começou como um movimento de reivindicação de trabalhadores precários começa a parecer-se com um reaccionário Tea Party.
Mas há outra coisa chocante: a escassez de ideias que por aí há a circular. O Fórum das Gerações convida todos a lançar ideias para a discussão, como se partisse do zero, e as ideias que estão a aparecer parecem de facto próximas do zero. Não haverá por aí partidos, sindicatos, clubes desportivos, universidades, think tanks, autarquias, investigadores, empresas, que tenham umas ideias na manga? Uma que seja? Ou a única solução será mesmo apostar nas hortas comunitárias? (jvmalheiros@gmail.com)
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