terça-feira, janeiro 04, 2011

A Hungria, a Ensitel e a liberdade de expressão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 4 de Janeiro de 2011
Crónica 1/2011
 
2011 vai ser o ano em que vai ser preciso continuar a defender as liberdades. E os outros também

1. É tristemente irónico que a União Europeia entre em mais este ano da crise de 2011 sob a presidência de um país cujo Governo acaba de limitar de forma drástica a liberdade de imprensa. É como se os deuses nos quisessem forçar a encarar o facto de que nada está garantido no domínio das liberdades, que a União Europeia não é um porto de abrigo para ninguém e que a coberto do combate à crise ou da procura de maior efi ciência todos os atropelos aos direitos dos cidadãos serão permitidos – da mesma forma que continuam a ser permitidos todos os atropelos feitos a coberto do combate ao terrorismo.

É triste que, perante uma lei que parece saída dos anos 30 do século passado, tudo o que a UE e os seus Estadosmembros possam fazer seja exprimir o seu desejo de que a Hungria esclareça “as dúvidas” que se levantam a propósito desta lei. É que a lei não oferece muitas dúvidas.

Entre outros mimos, o diploma permite que qualquer órgão de comunicação seja multado até 700.000 euros quando aquilo que publica não estiver de acordo com a defesa do “interesse público, da moral pública ou da ordem pública”. Ou quando publicar histórias que refi - ram sexo, violência ou álcool (?) de forma imprópria. Ou quando fi zerem uma cobertura desequilibrada da actualidade. Quem decide o que é próprio? Quem decide o que é equilibrado? Um grupo de cavalheiros nomeados pelo partido do poder.

E não se trata apenas de um excesso de zelo de um deputado neo ou velho-fascista: o Governo de Viktor Orban já tornou claro em vários casos que a sua intenção é mostrar aos jornalistas quem manda e que nenhuma crítica ao poder fi cará sem castigo.

Alguém imaginaria que, 150 anos depois, ainda fosse preciso explicar John Stuart Mill aos políticos e aos cidadãos europeus? Basta revisitar a recente polémica sobre a WikiLeaks para ver como a liberdade permanece frágil e furtiva, como continuamos a dever escrevê-la, ainda e sempre, sobre todas as páginas brancas e sobre as paredes.

2. Que a liberdade é algo incompreendido aprendemos também há dias através de um outro exemplo, pela acção de uma empresa que vende telemóveis e que dá pelo nome de Ensitel. A história conta-se depressa: a Ensitel vendeu em 2009 um telemóvel avariado a uma cliente, mas, quando foi confrontada com o facto, recusou-se a trocar o aparelho ou a reembolsar a cliente. A cliente, Maria João Nogueira, foi contando no seu blogue (Jonas- Nuts.com) as peripécias da reclamação junto da Ensitel, que chegaram ao Centro de Arbitragem de Confl itos de Consumo de Lisboa. Mas este também não resolveu a questão a contento da cliente, que acabou por mandar reparar o telemóvel à sua custa.

Fast forward. Antes deste Natal, Maria João Nogueira soube que tinha sido processada pela Ensitel, que a intimava a retirar do blogue os posts onde relatava a sua saga.

A Ensitel foi obrigada a recuar no processo judicial e a pedir desculpas publicamente, ainda que a contragosto, devido a uma verdadeira revolta online contra a empresa – traduzida em comentários no Facebook e no Twitter, sátiras no YouTube, páginas anti-Ensitel criadas um pouco por todo o lado – e o facto está a ser lido como uma manifestação do novo poder do consumidor na era da Internet, mas a história tem outras leituras.

De facto, que a empresa tenha uma política de qualidade algo descontraída, que tenha uma ideia original de como deve tratar os clientes, que não perceba em que consiste o valor daquilo que vende, que reaja de forma primária perante uma reclamação e que não saiba bem o que é um blogue e qual é o poder da Internet, ainda se pode compreender.

O que é mais difícil de aceitar é que a empresa tenha achado que podia usar a lei para amordaçar e intimidar um cidadão apenas porque não gostava do que ele dizia.

A história da Ensitel mostra, à sua pequena escala, que é possível defender as liberdades. O que nos contará a história da Hungria? (jvmalheiros@gmail.com)

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