por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Novembro de 2005
Crónica 33/2005
Se a república não pode tolerar os distúrbios, também não pode tolerar subúrbios como estes, em Paris ou em Lisboa.
Os tumultos que têm assolado os subúrbios parisienses e que alastraram já a outras cidades francesas não podem ser considerados uma surpresa. Desde há muito que actos de violência exactamente do mesmo tipo destes de que temos tido notícia fazem parte do quotidiano de muitos dos subúrbios pobres de Paris. É verdade que o fenómeno não tinha a dimensão dos acontecimentos dos últimos dias, mas desde há anos que o fogo posto a automóveis nestes subúrbios deixou de ser notícia nos jornais, de tão banal. A degradação, o desemprego e a fealdade, a violência, a delinquência e a droga, a intolerância étnica e religiosa tornaram-se marca destas cidades abandonadas.
Ninguém sabe exactamente quem são e o que querem estes jovens, que incendeiam automóveis de luxo mas também os carros dos vizinhos e autocarros, McDonalds e cabeleireiros e até escolas e pavilhões desportivos. Há quem veja na sua actuação a mão de gangs organizados de tráfico de droga, vincando a sua soberania sobre um espaço que vive já fora das leis da República, outros vêem no seu desprezo pela sociedade que os acolheu (ou aos seus pais) um sinal da ideologia integrista muçulmana, outros apenas um movimento caótico de jovens enraivecidos com a falta de perspectivas, de emprego, com a segregação, com a própria violência onde vivem.
É provável que haja um pouco de cada ingrediente e em certos casos uma mistura de todos. Mas do que não resta dúvida é que a situação destas “banlieus” degradadas, onde a taxa de desemprego entre os jovens com menos de 25 anos chega a roçar os 50 por cento, onde a esperança de emprego legal, quando existe, se resume às empresas de limpeza onde os seus pais trabalharam, não podia gerar nada de bom.
Serão estes jovens vítimas de um sistema violento e injusto? Na sua maioria, sem dúvida – e isso mesmo conclui um relatório do Tribunal de Contas francês sobre a integração dos imigrantes, ao denunciar as suas condições de vidas “frequentemente indignas”.
Mas isso não significa que a República deva dar mostras de tibieza na repressão dos actos dos últimos dias. A sociedade não pode tolerar que se incendeiem carros e escolas ou se agridam os passantes mesmo que seja para dar livre curso a uma justa raiva. É evidente que a polícia deve actuar com firmeza perante estes excessos e responsabilizar os culpados. Mas sejamos claros: não é possível ganhar esta guerra no plano militar. A não ser que se pretenda levar a lógica até ao fim e varrer os subúrbios a napalm.
A verdade do outro lado da moeda é que estes jovens vivem nestes bairros uma vida que nenhum de nós aceitaria para os nossos filhos. O que pensaríamos da república, da democracia, da lei e dos bons costumes se os nossos filhos tivessem as oportunidades que se oferecem a uma criança nascida do Bairro de Angola, aqui às portas de Lisboa? Se pelo sítio onde nasceram e pela origem étnica estivessem condenados à ignorância, a aprender a violência como linguagem e a marginalidade como forma de vida? Se estivessem condenados ao olhar desconfiado, amedrontado ou de desprezo dos outros? Sentiríamos raiva? Suficiente para deitar fogo a um automóvel?
Se a república não pode tolerar os distúrbios, também não pode tolerar subúrbios como estes, em Paris ou em Lisboa. Não é a velha conversa da prevenção versus repressão. A sociedade não pode prescindir da repressão quando a agressão se instala, mas a melhor política é evitar a geração da violência. E é a melhor política não só porque é a que dá melhores resultados, mas porque é a mais justa, a mais humana.
Também à volta (e dentro) das nossas cidades se espalham bairros degradados, com a mesma violência, a mesma delinquência, a mesma desesperança e a mesmo desrespeito pela lei que vemos explodir em França. Vamos esperar para ver o que acontece?
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