Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Junho de 2004
Crónica 24/2004
Confesso que é com um arrepio de horror que vejo a febre da bandeira portuguesa que invadiu Portugal – como vejo com o mesmo horror as massas ululantes que abandonam os estádios na febre da vitória, agitando os cachecóis e atravessando-se à frente dos carros com aquele sentimento destruidor de invulnerabilidade, invencibilidade e impunidade que invade os adeptos das equipas vencedoras, aproveitando a oportunidade para gritar uns palavrões, humilhar os fracos e os vencidos e ir beber umas cervejas.
Sei que são coisas antigas, comportamentos seleccionados e gravados no nosso cérebro primitivo, a que ninguém foge totalmente, que foram essenciais durante milénios para garantir a sobrevivência da espécie contra os inimigos humanos e naturais. Mas sei também que sob eles se esconde o direito do mais forte e a irracionalidade, a agressão fácil e o desprezo dos fracos, o sentimento de superioridade e o orgulho nacionalista que justificam todos os abusos e o ódio pelos outros – sejam eles quem forem.
Não é por acaso que as claques futebolísticas estão tão próximas de uma ideologia precisa e não de outras. O culto da violência, a ideologia supremacista que os clubes professam (pelo menos em relação a si próprios), a adesão aos símbolos mais do que às pessoas ou às ideias e a necessidade de integração acéfala num colectivo e de seguir uma cor, uma bandeira e um chefe desenham um claro perfil de comportamento.
Não há, nesta febre da bandeira, nada de nobre, nada de bom, nenhuma ideia positiva. Só muito raramente e durante curtos períodos as bandeiras são capazes de apelar ao melhor que há nas pessoas e esta vez não é uma dessas excepções. Uma bandeira pode ser um grito de liberdade e de independência, uma afirmação de inteligência e solidariedade perante uma agressão que os ponham em causa. Mas não é esse o caso.
A bandeira apela à mobilização, à vitória e à fé, mas não apela a nada daquilo que nos últimos anos se tentou convencer os portugueses que devia ser a nossa aposta: a criatividade, a inteligência e a excelência, a educação e a formação, a qualidade e a beleza, o progresso e o bem-estar. Nem sequer à solidariedade, pois o fervor patriótico tem uma afinidade especial com a superioridade nacionalista, com a xenofobia e com o racismo. A bandeira só define uma solidariedade depois de definir cuidadosamente a fronteira onde ela se esgota e se transforma em ódio. A bandeira não apela ao neo-córtex mas ao cérebro primitivo, não apela à arte e à ciência mas à força e ao medo.
Sampaio ficou satisfeito por os portugueses assumirem a nacionalidade e há, de facto, algo positivo em abandonar a triste vergonha em que temos vivido, essa auto-comiseração estéril, e em conseguir encontrar ânimo para acreditar em alguma coisa.
É apenas triste que esta energia e esta mobilização não tenham tradução em nada de realmente importante, algo de que realmente nos pudéssemos orgulhar. É triste que aquilo em que acreditamos seja apenas isto em que podemos acreditar sem custo, seja esta mobilização que em nada nos compromete e nada nos exige senão beber cerveja e buzinar nas ruas.
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