José Vítor Malheiros
A 6 de Março de 1899, faz hoje 100 anos, a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha. Conta a história que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer, chamado Felix Hoffman, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai. Hoje, as cefaleias que infernizam a vida de cada um, vergam-se ao conhecido comprimido branco. E passado um século, é a vez da super-aspirina, mais amiga do estômago, subir ao palco.
Se fosse uma divindade, Aspirina seria a deusa da Saúde e o seu nome grego seria Panaceia. Uma divindade doméstica, com um sorriso pacificador, umas mãos frescas e mornas como as mãos das mães e para a qual todos os homens se voltariam num momento ou noutro.
A história oficial diz que o ácido acetilsalicílico foi sintetizado por um químico do laboratório Bayer no dia 10 de Agosto de 1897, quando procurava um remédio para acalmar as dores de reumatismo do pai.
O nome do homem era Felix Hoffmann (não confundir com o Albert Hofmann que em 1943 sintetizou o LSD) e a foto que o imortalizou mostra-o empertigado e olhando a câmara a três quartos, como era da praxe, de chapéu de coco, exibindo um sorriso satisfeito consigo mesmo, um brilhozinho nos olhos e uma barba de evocação pasteuriana.
A descoberta do ácido acetilsalicílico não foi feita por acaso, nem foi o resultado de uma intuição genial, nem sequer era surpreendente - como seria adequado para aquela que pode reivindicar sem grande contestação o título de "droga do século". A substância fabricada por Hoffmann, que o químico tinha conseguido estabilizar de forma a poder ser usada como medicamento, era apenas uma variação de outra, o ácido salicílico, que já era usado desde 1875 para aliviar a febre e cujo uso tinha raízes na Antiguidade. De facto, Hipócrates (em 200 a.C.) descreve e receita extractos de casca e folhas de um tipo de salgueiro (Salix alba), que são ricas em salicina - uma substância natural rica em ácido salicílico - para aliviar dores e febre.
A Bayer de início não deu grande importância à descoberta mas Hoffmann continuou a trabalhar na sua droga e, em 1899 a empresa estava suficientemente convencida da validade do medicamento para iniciar a sua comercialização em grande escala. A 6 de Março deste ano a marca comercial "Aspirina" é registada na Alemanha.
Os médicos que começam a usar o pó nos seus doentes relatam melhorias espantosas e a droga torna-se famosa de um dia para o outro.No fim do século, em 1900, a droga encarna a invasão da vida quotidiana pela indústria farmacêutica: o pó branco passa a ser vendido sob a forma de comprimidos solúveis em água, acondicionados em práticos tubinhos de vidro. É a primeira droga de uso geral a ser vendida sob a forma de comprimidos e o público adere entusiasticamente. Até aí, a preparação de cada receita exigia uma visita ao boticário - frequentemente duas: uma para deixar a receita e outra, horas depois, para ir buscar o medicamento, preparado na oficina das traseiras da loja - mas a aspirina permite a popularização do uso de medicamentos.
O pré-acondicionamento da droga em comprimidos (o pó branco é "comprimido" em pequenas pastilhas) reduz para metade o custo do medicamento, o que ajuda à sua vulgarização.
O novo século começa com a promessa do fim das dores e a esperança da vitória sobre a doença. Em 1915 a aspirina entra com os dois pés no domínio público e passa a ser um produto de venda livre, impondo as farmácias domésticas como presença obrigatória em todas as casas de banho - "aspirina" passa a ser sinónimo de "comprimido", como "Kodak" é de "máquina fotográfica".
A imagem da aspirina, cuidadosamente desenhada, ajuda à invasão: o comprimido branco, com o seu sabor amargo q.b. e com o nome da Bayer formando uma cruz de cada lado, lembra o escudo de um cruzado em campanha contra a doença.
A generalização e a eficácia da aspirina, aliada aos seus raros efeitos secundários, é reforçada pelo aparecimento dos antibióticos no pós-guerra. A doença, em meados do século, começa a ser vista apenas como um desequilíbrio químico, para cuja cura basta encontrar o comprimido certo, a bala mágica que matará o dragão, a solução química que devolverá a saúde.
A procura de balas mágicas nem sempre é bem sucedida - Richard Nixon, quando quer imitar a promessa de Kennedy de 1961 de pôr um homem na Lua antes do fim da década, promete no início dos anos 70 uma cura do cancro antes do fim da década, com os resultados que se conhece - mas a aspirina continua a acumular sucessos ao longo do século.
Em 1948, descobre-se que a aspirina protege contra ataques cardíacos - ironicamente, nos anos 20 receou-se que a aspirina atacasse o coração e a publicidade empenhava-se em desfazer essa ideia. O uso do medicamento pelos cardíacos demora bastante anos mas acaba por se generalizar. Hoje, dos cinquenta mil milhões de aspirinas vendidas, mais de um terço (37 por cento) é usado na prevenção de ataques cardíacos - as dores de cabeça só aparecem em terceiro lugar (14 por cento), antecedidas da artrite (23 por cento) e seguidos das dores em geral (12 por cento).
A aspirina combate a dor, mas também a inflamação, a febre e melhora a circulação sanguínea - uma vantagem cujo reverso é a razão da principal contra-indicação da droga: o risco de hemorragias. O rol de indicações da aspirina não pára de crescer e ainda continua: da artrite às tromboses, da diabetes à doença de Alzheimer, a aspirina contribui para o tratamento de dezenas e dezenas de doenças.
O seu uso regular poderia salvar ainda 100.000 pessoas por ano, que têm ataques cardíacos mortais mas evitáveis, dizem os estudos, mas a aspirina é vítima do seu próprio êxito: tornou-se demasiado vulgar, é demasiado barata e tem uma imagem demasiado modesta para ser levada a sério por muitos utilizadores. Apesar da história do século XX ser a história da sua conquista do mundo.
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